Texto publicado originalmente pelo blog Histórias Mal Contadas.
Bem antes de se popularizar o nome de fake news — notícias falsas —, no Rio Grande do Sul existia um dito popular que significava a mesma coisa: a língua de lavadeira. No final dos anos 1980, eu fiz uma longa viagem pelo interior gaúcho em busca de uma explicação sobre de onde tinha saído a expressão “língua de lavadeira”. Foi uma busca interessante. Na época, não encontrei trabalho cientifico algum sobre o assunto. A explicação estava nas histórias orais que são transmitidas de geração para geração. Claro. Comecei conversando com as poucas e espalhadas lavadeiras em atividade. O tempo áureo da profissão tinha sido até o final da década de 1960, quando as máquinas de lavar roupa se popularizaram, e o preço tornou-se acessível para a maioria da população. No tempo das lavadeiras, na Região Metropolitana de Porto Alegre, elas viviam em comunidades que moravam na beira dos rios. Na época, eu conversei com umas 20 lavadeiras, todas de mais de 60 anos, e que exerciam a profissão desde a adolescência.
A primeira com quem tive uma longa conversa foi com uma senhora que vivia em uma comunidade de lavadeiras próxima ao 9º Regimento de Cavalaria Blindada (9º RCB), em São Gabriel, cidade agropecuária na Fronteira Oeste. Aqui cabe um comentário: até os anos 1980, as cidades da fronteira, como é o caso de São Gabriel, tinham um grande contingente de tropas e equipamentos militares. E a maioria dos soldados estava prestando o serviço militar obrigatório e vinha de várias cidades. Portanto, precisava de quem lavasse a roupa.
Anos depois, vários desses contingente de militares e armamentos foram transferidos para o Amazonas, por conta de acordo entre países do Mercado Comum do Sul (Mercosul), que desmilitarizaram as fronteiras gaúchas com os castelhanos Não lembro o nome das lavadeiras com quem conversei em São Gabriel, afinal de contas lá se vão 30 e poucos anos. E também encontrar a reportagem no arquivo do jornal dá um baita trabalho. Mas lembro do conteúdo do que relatei. As lavadeiras trabalhavam ajoelhadas em pedra plana e lisa na beira do rio. Sempre dava preferência nas minhas entrevistadas para as mais velhas do grupo. A conversa começava falando do clima, do preço do sabão e de coisas gerais. Lá no meio, puxava o assunto da fama da língua da lavadeira. Não lembro de alguma delas ter ficado braba com a lembrança. Muito pelo contrário. A conversa acabava em risada.
Pelas conversas que tive com as lavadeiras, seus clientes e os historiadores, a fama nasceu pela natureza do ofício. Elas recebiam a roupa suja da família para lavar. Um exame das peças de roupas revelava o modo de modo de vida da família. Principalmente, as roupas íntimas. Elas podiam dizer até com que frequência o casal mantinha relações sexuais. Lembro de outro dito popular: “roupa suja se lava em casa”. Na época, falavam que o dito era efeito colateral das línguas das lavadeiras. Como elas trabalhavam em grupo, a conversa delas, geralmente, girava em torno do dono da “trouxa de roupa suja”. Muitas dessas conversas das lavadeiras acabavam se tornando assunto na cidade. É claro. Cada uma que contava uma história aumentava um pouco mais. Ou tornava a história mais engraçada. Principalmente, durante a disputa eleitoral nas eleições para prefeito e vereador.
Hoje, na era dos computadores, das viagens espaciais e da internet, no Rio Grande do Sul a lembrança da fama da língua das lavadeiras pertence a nossa cultura. No interior, especialmente nas fronteiras com os castelhanos, ainda se ouve muito a expressão: “mais afiado que língua de lavadeira”. Nas palestras que faço para estudantes de jornalismo, nas redações dos pequenos jornais pelo interior do Brasil, eu lembro a história da língua das lavadeiras para facilitar o entendimento do que é fake news. Claro, a noticia falsa é elaborada de uma maneira profissional. Mas o principio é o mesmo da língua da lavadeira. Lá em Encruzilhada do Sul, pequena cidade agrícola no Sul do Estado, há um dito popular que diz o seguinte: “deus me livre da língua das lavadeiras”. Hoje, nós podemos acrescentar: “e das fake news também”.
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Carlos Wagner é jornalista, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, entre eles “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017.