Se a má notícia é a única notícia de fato, como afirma um velho aforismo, jornalistas de economia tiveram no Brasil um ano de fartura. O balanço de 2015 foi essencialmente um inventário de estragos. O país chegou a dezembro com as contas oficiais em frangalhos, dívida pública em alta, inflação acima de 10%, retração econômica de mais de 3% e uma crise política sem solução à vista. “Brazil’s fall” (Queda do Brasil) foi título de capa da última edição da revista britânica The Economist.
Além dos danos também foi registrado um esforço de reparação. O pagamento de R$ 72,4 bilhões de pedaladas fiscais foi assunto de primeira página de três grandes jornais – Estado de S. Paulo, Globo e Folha de S. Paulo – no último dia do ano. O governo decidiu liquidar esse valor de uma vez, segundo a explicação mais citada, para reduzir o risco de impeachment. Se o lance terá esse efeito só se verá nos próximos meses. Mas quantos leitores conhecem de fato a acusação contra a presidente Dilma Rousseff?
Uma boa explicação apareceu raramente nos jornais, tevês e rádios. As pedaladas foram quase sempre descritas como atraso de pagamentos devidos ao BNDES, ao Banco do Brasil, à Caixa e ao FGTS. Em todos os casos, o Tesouro teria retardado a transferência de verbas destinadas a programas oficiais. Mas onde estaria o crime de responsabilidade?
É difícil entender por que um atraso de pagamento, ou de repasse de verba, pode ser considerado um delito punível com a perda de um posto político. O castigo parece desproporcional, e talvez fosse, mesmo, se o deslize do governante fosse apenas um calote temporário. Além disso, seria motivo suficiente para o Tribunal de Contas da União (TCU) recomendar a rejeição do relatório do Executivo?
A história é só um pouco mais complicada, mas poucas vezes foi exposta com clareza nos meios de comunicação. Em 2012 o governo atribuiu a si mesmo, por decreto presidencial, o direito de só liquidar as contas com os bancos oficiais dois anos depois de apurado o valor devido. Em outras palavras: o governo inventou um meio de se fazer financiar pelos bancos estatais. Mas a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, proíbe esse tipo de financiamento.
Quem sabe um pouco da história econômica e administrativa do Brasil até os anos 90 deve conhecer os desmandos políticos e fiscais cometidos com instituições financeiras do setor público. Bancos e caixas eram importantes ferramentas eleitorais e instrumentos de poder tanto pessoal quanto partidário. Quando o Plano Real foi lançado, muitas dessas instituições estavam quebradas ou muito perto disso. O socorro financeiro a Estados teve como contrapartida, em vários casos, o fechamento dessas instituições.
Funcionários do Tesouro logo identificaram o risco das pedaladas fiscais. Advertiram os superiores, mas seus avisos foram desprezados. A história das advertências foi muito bem contada, com base em declarações e documentos, em reportagem de Leandra Peres no Valor. Nenhuma discussão sobre as pedaladas e sobre a deliberada violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, nesse caso, será completa sem uma referência a essa história.
Mas por que descrever o episódio como um caso de pedaladas? Os jornais poderiam ter esclarecido – ou explicado mais cuidadosamente – esse detalhe. A palavra já era usada há um quarto de século, pelo menos, para descrever formas de levar adiante um negócio em condições financeiras desfavoráveis.
Os truques mais comuns consistiam em assumir novas dívidas para liquidar compromissos de vencimento mais próximo ou em atrasar certos pagamentos para cuidar de outros. A imagem ciclística tem um sentido claro, quando se percebe o lance financeiro. Pedala-se para manter a bicicleta em movimento e para evitar a perda de equilíbrio. Em outros tempos, o substantivo pedalada e o verbo pedalar foram usados no imprensa para descrever jogadas financeiras malsucedidas e nem sempre muito limpas.
A novidade, agora, é a inclusão da pedalada na gestão rotineira das finanças federais. Neste caso, no entanto, há uma particularidade politicamente importante: o recurso ao financiamento do Tesouro por instituições financeiras federais. É prerrogativa dos congressistas propor e aprovar outro entendimento desses fatos. Mas é tecnicamente complicado negar a ocorrência daquele financiamento e, portanto, a violação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A notícia do pagamento daqueles R$ 72,4bilhões foi parte de um enorme conjunto de informações sobre a crise. Boa parte dos números disponíveis, na semana final do ano, cobria o período até novembro. Mas esses dados eram suficientes para mostrar mais um ano perdido e, quase certamente, para anunciar pelo menos mais doze meses de enormes dificuldades.
De janeiro a novembro o setor público acumulou, em todos os níveis da administração, um déficit primário de R$ 39,52 bilhões – sem contar, portanto, o custo dos juros. Todos os jornais deram destaque ao desastre fiscal e acentuaram um ponto politicamente sensível; com as operações de dezembro e com o pagamento de mais de R$ 70 bilhões de pedaladas, seria possível manter o resultado primário dentro do novo limite negociado com o Congresso? Esse novo limite é um déficit primário de R$ 119,9 bilhões em 2015.
Todos os jornais destacaram esses pontos, mas, como sempre, deram pouca importância ao resultado nominal, calculado com inclusão dos juros. Em 12 meses o déficit nominal do setor público bateu em 9,3% do produto interno bruto (PIB), mais que o triplo do limite prescrito para a União Europeia, 3%. Na média, o déficit fiscal dos europeus deve ter ficado abaixo desse limite, em 2015.
Em todo o mundo poucos países têm uma situação fiscal parecida com a do Brasil, quando se considera o resultado geral das contas públicas. Mas também esse detalhe tem sido pouco explorado, apesar de seu valor informativo.
Pouco se avançou, no fim de ano, em projeções para 2016. Os jornais continuaram dependendo principalmente das estimativas de instituições financeiras e consultorias, coletadas semanalmente pelo Banco Central na pesquisa Focus. A mediana das projeções divulgadas no dia 28, segunda-feira, indicou para o novo ano uma contração econômica de 2,81% . Será um resultado desastroso depois da recessão de 3,7% estimada para 2015. A inflação, segundo essas fontes, deve recuar de 10,7% para 6,86%, continuando, muito acima da meta de 4,5% e também do limite de tolerância de 6,5%.
De resto, cada nova notícia tem sido acompanhada, quase invariavelmente, de uma previsão ruim. Exemplo: o novo salário mínimo, R$ 880, deve abrir um buraco de R$ 2,9 bilhões no Orçamento de 2016, porque o custo para a União deve ultrapassar a estimativa já embutida nas contas. Resta para os otimistas, no entanto, uma esperança. Nos últimos cinco anos os fatos foram sempre piores que as projeções iniciais. Como as previsões para o novo ano já são muito ruins, talvez a ordem finalmente se inverta.