Leia atentamente os versos de Guimarães Rosa, presentes no livro Magma (1936), sob o título “Riqueza”: “Veio a meu quarto um besouro/de asas verdes e ouro/e fez do meu quarto uma joalharia…” O poder econômico, metaforizado na imponente figura do “besouro de asas verdes e ouro”, busca a felicidade geral de todos ou o incremento da acumulação de riquezas? De fato, a sociedade não pode mais ficar refém de um Estado que cobra muito, mas pouco atende o cidadão. Nos primeiros cinco meses do ano, os brasileiros, principalmente os da classe média e de baixa renda, trabalharam apenas para pagar impostos diretos.
Em coluna publicada no Correio Braziliense, de 24/09/2015, o jornalista Ari Cunha comenta uma notícia alarmante: “Pelo quinto ano consecutivo, o Brasil ocupa o último lugar, entre os 30 países com as maiores cargas tributárias do planeta, onde o retorno de bem-estar à sociedade é o pior de todos. O chamado Índice de Retorno de Bem-Estar à Sociedade (Irbes) traduz, em números, o que o brasileiro sente na própria pele quando busca amparo do Estado em hospitais, escolas, transporte e segurança pública.” Para reverter esse quadro, uma reforma tributária se faz necessária para viabilizar conjuntamente a eficiência econômica, a simplicidade administrativa, a responsabilidade política e a justiça social.
Deve-se perseguir a tributação justa, ou seja, aquela em que o financiamento do Estado seja encargo de todos (dever da cidadania), na medida da capacidade contributiva de cada um. Por justiça fiscal, convém diminuir a tributação sobre o consumo e agravar os impostos sobre a renda e o patrimônio. Para tanto, faz-se necessário implantar a tributação sobre as grandes fortunas, as grandes heranças e os ganhos dos rentistas, ao passo que sejam reduzidos os encargos tributários sobre o consumo, a circulação de bens e serviços e sobre os segmentos sociais de menor capacidade econômica.
A reforma tributária pressupõe amplo envolvimento social, considerando também a necessidade de uma profunda reflexão sobre o papel do Estado em suas relações com a cidadania. Infelizmente, gestões políticas precipitadas moralmente produzem um efeito devastador para o pleno funcionamento da máquina pública: a corrupção patrimonialista. O sociólogo alemão Max Weber usou a palavra “patrimonial” para descrever governos que servem aos os interesses de uma rede de amigos, familiares, apadrinhados e afiliados políticos que demonstram lealdade aos donos do poder. O inverso – o Estado não patrimonialista – defende os interesses da sociedade como um todo de forma impessoal; as instituições e cargos públicos existem para servir a nação e não podem ser usados para ganhos privados.
A corrupção patrimonialista
Em Raízes do Brasil (1936), o historiador Sergio Buarque de Holanda já denotava a característica fundamental do “homem cordial” brasileiro que, em sua débil vida pública, era tenazmente propenso a não considerar a fundamental diferença entre seu interesse privado e a dimensão da esfera coletiva que o cingia: “Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata, conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário ‘patrimonial’, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalece a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer as funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático”.
O jurista Raymundo Faoro, no livro Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1958), asseverava que a esfera pública e a esfera privada são amalgamadas em um único poder central, emanado ou do governante, e/ou da camada de indivíduos detentores do poder político (estamento). Submetido a uma ordem patrimonial, “o liberalismo que assim nasce tem alguma coisa de liberal e pouco de democrático. […] O problema do liberalismo era compatibilizar-se com os estamentos, que assumem papel semi-independente. Forma-se uma modalidade especial de liberalismo, onde a base não está no povo, no cidadão, mas nos corpos intermediários. […] O povo, nessa perspectiva, é um corpo inorgânico a ser protegido ou, se entregue a si mesmo, a ser temido. […] As deficiências do liberalismo político estão na base das fraquezas do liberalismo econômico. Embora, entre nós, um não tenha saído do outro, com mais desencontros do que encontros, na base da racionalidade do liberalismo econômico estão os elementos previsíveis e calculáveis do Estado de direito. Esta irracionalidade formal é o grande obstáculo de um e de outro para vencer o patrimonialismo”.
Para prosperar a reforma tributária, é de suma importância que ultrapassemos a corrupção patrimonialista. Somente assim, encontraremos as condições necessárias para a efetiva capacidade do Estado, sintonizado com o desenvolvimento exemplar do conjunto das políticas públicas, no que se refere à adequada prestação de serviços, ao financiamento dos direitos sociais e à oferta de bens públicos dirigidos ao conjunto dos seus habitantes.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários