A mistura de inflação e recessão traz de volta pesadelos de um passado desconhecido para milhões de brasileiros nascidos a partir dos anos 1990. Não são, pelo menos até agora, pesadelos tão assustadores quanto os da primeira metade dos anos 80, quando o desemprego e o desarranjo dos preços condenaram milhares e milhares de famílias à miséria. Mas o susto tem sido suficiente para ocasionar o ressurgimento, nos meios de comunicação, de um tipo especial de serviço – as matérias sobre como enfrentar a alta do custo de vida e a retração da economia.
Quem era adulto nos anos 80 pode ainda lembrar-se de histórias de desespero. No ABC um operário deu um jeito de escalar um poste e pendurou-se na fiação elétrica. Ocorreram outros suicídios, mas esse foi, talvez, o caso mais pavoroso. Supermercados passaram a vender asas de frango como produtos separados e só assim muitas pessoas puderam consumir alguma carne.
Houve também, ações de solidariedade, como o esquema cinco por dois (ou cinco por três?). Cinco famílias com pessoas ainda empregadas articulavam-se para ajudar duas ou três abatidas pelo desemprego.
O Brasil começou a sair da recessão e da crise do balanço de pagamentos em 1984, mas a inflação continuou forte e várias tentativas de estabilização ocorreram a partir de 1986. Os planos Cruzado, Cruzado 2, Verão e Collor fracassaram por uma coleção de erros, mas serviram de aprendizado e, de alguma forma, abriram o caminho para o Plano Real, o primeiro esforço de estabilização, em décadas, com resultados sustentáveis.
Antes disso, os trabalhadores conseguiam, exceto nos piores momentos, uma convivência precária, e em boa parte ilusória, com o permanente desastre inflacionário. Sempre perdiam, é claro, porque nenhuma indexação e de salários poderia compensar de fato a inflação, mas conseguiam tocar a vida, precariamente, quando havia pelo menos emprego.
Colunas de aconselhamento
Durante a maior parte desse tempo a imprensa tentou ajudar as famílias a enfrentar a adversidade dos preços e, em algumas situações, da retração econômica. As chamadas matérias de serviço eram mais valorizadas nos piores momentos. Mas também haviam sido, por motivos diferentes, quando colunistas de finanças começaram a dar conselhos, alguns até cômicos, sobre como aplicar em ações e em títulos de renda fixa. A onda começou nos fim dos anos 60 e cresceu na década seguinte, quando se intensificou a especulação com ações em bolsa. Mesmo depois do desastre no mercado de ações, no fim dos anos 70, as colunas de aconselhamento financeiro continuaram valorizadas.
Agora, com o retorno da inflação acelerada – a taxa de 10,67% em 2015 foi uma das mais altas do mundo –, colunistas de economia e finanças voltaram a atrair atenção como conselheiros para tempos difíceis. A recessão, espalhando desemprego, tornou ainda mais atraente esse tipo de serviço, prestado em rádios, tevês, jornais e, talvez em menor proporção, em revistas.
Esse aconselhamento pode ser útil, dentro de alguns limites, mas com frequência embute um engano e pode até ser perigoso. Afinal, será possível, mesmo, pela ação de indivíduos ou de grupos particulares, vencer a inflação e a recessão? Crise é mesmo sinônimo de oportunidade? Para todos? Essas questões são geralmente ignoradas, mas nenhum jornalista econômico deveria desprezá-las.
Há algumas décadas, na pior fase da inflação, pessoas corriam aos supermercados logo depois de receber o salário para fazer compras da quinzena ou do mês. Faziam isso porque em poucos dias o dinheiro recém recebido valeria muito menos. Houve algum ganho, durante algum tempo, para quem foi capaz de manter esse jogo, mas a inflação, afinal, sempre acabou vencendo todos os truques.
Colunistas chegaram a aconselhar famílias, nessa fase, a aumentar o volume comprado para fazer estoque em casa. Conseguiriam, assim, antecipar-se à alta de preços. Quem mantinha algum bom senso ficava de cabelos arrepiados ao ler ou ouvir esse tipo de conselho.
Havia um problema evidente nessa recomendação, embora a maior parte das pessoas o ignorasse ou parecesse ignorar. Se um consumidor correr às compras para fazer estoques de produtos, conseguirá evitar ou pelo menos atenuar os males da inflação. Se várias pessoas fizerem isso, ainda conseguirão um resultado semelhante. Se muitas, ou todas, seguirem essa tática, os preços crescerão mais velozmente e os aumentos previstos para dentro de duas semanas, por exemplo, ocorrerão mais cedo.
Embora de modo mais discreto, conselhos desse tipo começaram a reaparecer nos meios de comunicação. Há uma distância enorme entre orientar o consumidor para comparar preços ou buscar bens substitutos e sugerir-lhe uma ação especulativa – porque disso se trata, no fundo – contra a inflação.
Os riscos do aconselhamento
Conselhos de prudência contra a recessão também podem ser perigosos, se forem seguidos por muita gente. O exemplo mais óbvio talvez seja a orientação para conter os gastos e deixar mais dinheiro na poupança. A ideia parece muito sensata, quando todos parecem expostos ao risco do desemprego. Do ponto de vista individual, a tática pode ser, de fato, muito boa. Ainda funcionará, no entanto, se todos, ou muitos, decidirem entrar no mesmo jogo?
O resultado, é claro, será um desastre maior. A demanda, já reduzida, encolherá mais velozmente, as empresas ficarão com maior volume de mercadorias encalhadas e haverá mais desemprego. A demissão antes considerada apenas um risco será uma realidade para muitos trabalhadores.
Os conselhos sobre a busca de oportunidades também podem conter uma dose de ilusão. Um contador demitido de uma empresa poderá montar uma lanchonete e ganhar dinheiro. Uma operária poderá fazer um curso, tornar-se manicure e até viver melhor do que antes. Mas oportunidades, num ambiente recessivo, são inevitavelmente limitadas. Quantas pessoas poderão driblar os males da recessão iniciando uma nova atividade? De onde virá a demanda?
Se a recessão envolve exatamente um problema de demanda, com os consumidores dispostos a gastar menos e os empresários temerosos de comprar máquinas e equipamentos, é estapafúrdio imaginar um mundo paralelo, cheio de prosperidade para todas as pessoas – ou para muitas – empenhadas em ganhar a vida em uma nova atividade.As histórias de pessoas vitoriosas, pelo menos por enquanto, em novas profissões pode ser inspiradora, mas ninguém deveria esquecer por que a mudança de profissão foi necessária, nesses casos.
Conselhos sobre como driblar a inflação ou a recessão podem ser úteis para algumas pessoas. Tornam-se inúteis, e até perigosos, quando são seguidos por muitos indivíduos ou por todos. Acreditar nesse tipo de orientação como resposta efetiva contra desarranjos macroeconômicos é incorrer na chamada falácia da composição. Essa falácia é verificada quando se atribui ao todo, ou a uma classe de fatos, as propriedades de indivíduos ou de partes.
O exemplo do pânico no cinema pode esclarecer a noção. Qualquer pessoa na sala, considerada isoladamente, pode levantar-se de sua poltrona e sair pela porta em, digamos, vinte segundos. Se uma pessoa tiver problemas de mobilidade, outras duas poderão ajudá-la a sair com alguma presteza. Se alguém, no entanto, gritar “fogo” e todos os indivíduos tentarem fugir ao mesmo tempo, a multidão ficará entalada na saída e provavelmente haverá gente amassada e pisoteada.
Longe de ser hipotético, esse quadro tem sido observado muitas vezes. Lembrá-lo é uma boa forma de ilustrar a falácia da composição. Jornalistas deveriam pensar nisso, quando dão conselhos sobre como vencer a inflação ou contornar o problema do desemprego. Alguns indivíduos ou grupos podem usar esses conselhos com sucesso. Se muitos tentarem segui-los, o resultado será parecido com o do pânico na sala de cinema. Problemas macroeconômicos são resolvidos com boas políticas, nunca por meio de ações individuais.
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Rolf Kuntz é colaborador do jornal O Estado de São Paulo e professor na USP