A crise que afeta o jornalismo não deve preocupar apenas os profissionais e as organizações que se dedicam a produzir notícias. Se pensarmos que o jornalismo é um escudo da democracia e um meio de fortalecer a cidadania, enfrentar a crise que lhe corrói as bases é uma missão para muitos outros atores. Se considerarmos ainda que o jornalismo tem um papel fundamental na trama do tecido social e na promoção do diálogo, lutar para manter a atividade jornalística passa a ser uma responsabilidade coletiva, como a de defender serviços públicos essenciais e extensivos a todos, por exemplo. Claro que essa defesa pode esbarrar na questão do controle das mídias, mas isso não invalida a preocupação com o produto dessas organizações, que é de finalidade pública. Sim, porque embora o provedor seja, muitas vezes, uma propriedade privada, a informação que ele oferece é de caráter social e público.
As universidades não poderiam fugir disso e têm seu papel no enfrentamento da crise do jornalismo, seja pela natural vocação formativa ou por suas capacidades tentaculares. O que isso significa na prática? Em tempos como os nossos – quando o próprio ministro da Educação combate professores, estudantes e instituições de ensino -, é urgente e necessário listar exemplos concretos e potenciais contribuições das universidades nos campos do trabalho e da sociedade.
Qualidade da informação
Algumas iniciativas já estão em curso envolvendo a academia e atores preocupados com a sobrevivência do jornalismo no Brasil. Uma das mais visíveis é o projeto Credibilidade, que reedita no país um esforço internacional pelo aperfeiçoamento dos meios de comunicação através de indicadores e instrumentos que induzem à qualidade no jornalismo. O berço do empreendimento é o Trust Project e o capítulo brasileiro é liderado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), responsável também por este Observatório da Imprensa. O projeto Credibilidade reúne quase vinte veículos – entre os quais, Folha de S.Paulo, Nexo e O Globo – que, de forma consorciada, estabelecem parâmetros e práticas que devem ser adotados pelas redações visando a melhora efetiva do jornalismo oferecido.
Outra iniciativa que destaco é o Projeto GPSJor, desenvolvido em Santa Catarina para estudar os hábitos de consumo de Joinville para a proposição de um jornalismo mais conectado com as demandas informativas da população local. A iniciativa reúne a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Faculdade Bom Jesus-Ielusc e Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e busca articular e envolver atores e movimentos sociais para um diálogo de construção de novas bases informativas. Faço parte da equipe de pesquisa e posso atestar que existem imensos desafios não apenas na aglutinação das forças locais, mas também em termos de metodologia científica e no enfrentamento de aspectos paroquiais que alimentam a crise do jornalismo.
Em âmbito internacional e ainda em fase de estruturação está a Rede Lusófona pela Qualidade da Informação (RLQI), que conta com pesquisadores das federais de Santa Catarina e de Sergipe (UFS), além de universidades de Portugal, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor, Macau, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Participam também entidades classistas e que promovem o relacionamento entre imprensa e sociedade, de forma que a RLQI não vai ser um espaço apenas para a pesquisa acadêmica, mas sobretudo um ambiente promotor da qualidade do jornalismo, chave fundamental na subsistência da atividade em realidades tão distintas.
Laboratórios e articulações
É evidente que se espera que as universidades brasileiras contribuam para a formação de recursos humanos com alta qualificação para o jornalismo. Desde o início da oferta de cursos superiores na área, sempre estiveram no horizonte das escolas de jornalismo a preocupação com uma formação crítica e um ensino que garanta um notável desempenho técnico. O comprometimento com a ética e a deontologia veio na sequência, bem como uma adesão nítida com a defesa dos direitos humanos.
Entretanto, nas últimas duas décadas, temas como sustentabilidade econômica e empreendedorismo entraram para os currículos, levando os cursos a ofertarem conteúdos de economia e administração na tentativa de desenvolver habilidades e competências gerenciais. Essa ligeira reorientação pedagógica ampliou o espectro formativo e mudou o perfil dos egressos. É claro que esse esforço, isolado, não soluciona a crise do jornalismo, mas é um contributo da academia, bem como a formação de jornalistas preocupados não só com a sustentabilidade dos negócios mas, sobretudo, com os hábitos de consumo e as formas de envolvimento dos públicos.
Para além dos diversos exemplos que poderíamos citar aqui, o legado que as universidades podem oferecer como subsídios ao enfrentamento da crise deve também levar em conta as muitas possibilidades de ação de professores, funcionários e estudantes. Com mais de quarenta cursos de pós-graduação em comunicação e jornalismo, o Brasil tem uma pulsante cena de produção de conhecimento, materializada em dezenas de livros lançados todos os anos, um conjunto respeitável de eventos e arenas de discussão, e centenas de artigos publicados em revistas científicas de leitura gratuita e com acesso aberto ao grande público. É bem verdade que a maior parte dessa paisagem não é ocupada por quem investiga a crise do jornalismo, mas a dimensão da vitrine sinaliza a potência do nosso olhar.
E por falar em possibilidades, enumero três vetores que estão dentro do raio de ação da academia e que podem colaborar com a indústria e a categoria jornalísticas. 1. Podemos experimentar mais em linguagem e tecnologia, buscando criar formatos e novos produtos jornalísticos. A inovação é um motor do desenvolvimento humano e social, essencial para uma atividade que precisa se reinventar para sobreviver. 2. Podemos incubar empreendimentos de jornalismo local, estabelecendo consonâncias com o setor produtivo e fortalecendo o senso comunitário. Essa medida ajuda a gerar campo de trabalho e auxilia no combate à expansão de desertos de notícias. 3. Podemos ajudar a formular projetos de lei e políticas públicas que visem ao fortalecimento do mercado regional por meio de linhas de financiamento para uma oferta plural de mídia. Comprometer agentes econômicos locais na equação da sustentabilidade do jornalismo e envolver os poderes públicos são ações muito possíveis para as universidades, pois são aglutinadoras e encarnam ambientes de diálogo e construção coletiva.
Como se pode ver, as soluções para a crise do jornalismo também passam pelos campi universitários. Engajarmos professores, técnicos e alunos e convencê-los de que podem atuar de forma decisiva nesse problema são passos iniciais dessa jornada.
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e autor de A crise do jornalismo tem solução? (Ed. Estação das Letras e Cores)