Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desinformação e a exacerbação da crise de confiança

(Foto: Divulgação Unesco)

“Há 50 anos, se deu no JN, é fato”. Se você faz parte do grupo que mantém um antigo hábito de zapear pelos canais da televisão aberta brasileira, provavelmente irá se lembrar da campanha de cinquenta anos do Jornal Nacional. No ano passado, a TV Globo investiu na comemoração de meio século do seu principal produto jornalístico em meio ao crescente espalhamento de fake news. Parecia razoável, então, ressaltar o caráter crível das informações noticiadas pelo jornalístico que, nas décadas de 1970 e 1980, chegava na casa dos 70 pontos de audiência.

Na década seguinte, nos anos 1990, eu era uma criança aspirante à profissão de jornalista. Por isso, tenho uma memória bem marcada sobre o hábito do meu pai de sentar-se em frente à televisão, todos os dias, no mesmo horário, no mesmo canal, para se manter informado.

Quase trinta anos depois, o meu pai mantém uma rotina parecida: todos os dias, no mesmo horário, por meio do mesmo canal – conhecido vulgarmente como zap zap -, ele dispara para as suas listas de transmissão uma série de fake news. Eu, que a essa altura já sou um jornalista formado, procuro, em vão, contrapor tamanhos absurdos compartilhados utilizando os meios dos quais disponho mais rapidamente – em sua maioria, veículos da imprensa. A resposta que eu recebo? “É ridículo o que a Globo faz. Está até feio o que a Globo está fazendo. E você vem me dizer que eles são um jornal sério? Tá de sacanagem”.

Saber reconhecer versus não querer reconhecer

Um estudo divulgado neste ano e desenvolvido pela Kaspersky, empresa global de cibersegurança, em parceria com a empresa de pesquisa CORPA, analisou a atual situação da segurança dos internautas de países da América Latina a fim de descobrir o quão vulnerável eles são às fake news. A conclusão relacionada ao Brasil foi a de que 62% da população não sabe reconhecer uma notícia falsa. Contudo, observando a aderência, cada vez maior de parte da população pelas notícias falsas, é possível afirmar que o problema não está em não saber reconhecer uma fake news, mas em não querer.

A propagação das fake news evoluiu e alcançou um estágio no qual o esforço pretendido por muitos veículos de imprensa e agências de checagem na verificação, apuração e contraposição de conteúdo ilegítimo caminha para o inócuo. Isso porque somente a divulgação de informações baseadas em apuração criteriosa não é mais suficiente e esbarra, neste novo momento, numa grave crise de confiança e na consequente descredibilização das fontes que possuem um mínimo de rigor jornalístico. Por outro lado, há um crescente enaltecimento daqueles que se utilizam somente do caráter estético do jornalismo para alastrar e estimular teorias e narrativas ideológicas.

Recentemente, ao contrapor, por meio de dados, um comentário de um ex-colega de trabalho, professor universitário, sobre a situação da pandemia de coronavírus na Alemanha, ele reafirmou a sua posição compartilhando um texto publicado num site da internet travestido de portal jornalístico. E complementou: “Chegamos naquele impasse de guerra de informações. Você tem os seus veículos prediletos e eu tenho os meus. Seguiremos em caminhos separados, cada um com suas fontes de informação. Eu compartilho o que considerar honesto em minha página e você pode fazer o mesmo na sua”.

Decerto, os veículos mais tradicionais da imprensa possuem suas linhas editoriais que passeiam por uma ou outra posição política e ideológica. Mas estão longe de distorcer fatos ou manipular dados oficiais em suas produções jornalísticas. Isso faz com que você possa tranquilamente optar por ler a revista Veja ou a Carta Capital; assistir ao canal Fox News ou ao MSNBC, nos EUA; ou ler o jornal Le Figaro ou Libération, na França, por exemplo. Esses e muitos outros veículos se diferem pelo seu editorial e agradam, cada um, ao seu público, mas se assemelham num importante e necessário exercício à democracia: informação fundamentada e averiguada.

O que temos visto, no entanto, é o acirramento de uma guerra de confiança, criada como estratégia de progresso das fake news: cada um, agora, escolhe a sua fonte favorita de informação, sem que, para isso, seja necessário um cumprimento mínimo das premissas e exigências técnicas de um jornalismo praticado com seriedade. Com isso, se informar pelo “Blog do Tio Zezito” – que descobriu, sozinho, a aliança entre o PT, o João Doria e a China para tomar o poder em todos os países e transformar o mundo em uma grande comunidade comunista – emerge como uma escolha pessoal irrefutável, não passível de questionamentos sobre os seus métodos conspiratórios.

Quando as fake news geram reações perigosas

João Doria, PT e China, seguramente, não irão implementar uma comunidade comunista em todo o mundo. Por outro lado, a avalanche de desinformação incentiva o comportamento da população. Uma fake news relacionada ao coronavírus e bastante disseminada em grupos de aplicativos e redes sociais dava conta do beneficio do vinagre na higienização das mãos. Resultado: as vendas de vinagre cresceram 94% em um mês, de acordo com a Neogrid, empresa especializada em monitoramento de pontos de vendas.

Mais grave ainda é considerar que pessoas podem morrer com a escassez de um medicamento nas farmácias ou com a banalização de uma crise de saúde mundial quando a guerra de confiança se instaura no alto escalão de um governo. O povo não sabia se confiava no ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, amparado pela medicina e por preceitos técnicos reproduzidos e intensificados na maioria dos países do mundo, ou no presidente Jair Bolsonaro, pautado por estudos incipientes e conceitos ultraliberais.

Pesquisa do Reuters Institute, de Oxford, apontou que políticos, celebridades e outras figuras públicas são responsáveis por espalhar cerca de 20% das fake news sobre o coronavírus, além de responsáveis por gerar cerca de 70% do engajamento sobre o assunto nas redes sociais. É uma guerra que conta com garotos-propaganda como impulsionadores para a sua rápida propagação.

Nos últimos dias, a TV Globo e seus repórteres sofreram diversos ataques durante os seus links ao vivo e nas redes sociais. “Globo Lixo!”, gritaram alguns. #GloboLixo, elevada aos trending topics, no Twitter. “Jornal sério? Tá de sacanagem”, esbravejou meu pai, antigo fiel espectador. Se, nas últimas décadas, o que dava no JN e em outros veículos da imprensa era fato, hoje, é visto como fake para muita gente. A inversão está acontecendo rapidamente.

Em meio à pandemia e ao confinamento, e entre uma live de yoga e outra de dupla sertaneja, uma reflexão não pode fugir à mente de toda a sociedade e, principalmente, dos profissionais de comunicação: em qual momento e por que ocorreu a ruptura que fez despontar essa crise de confiança pela qual estamos cercados, abrindo caminho para a ascensão de ignomínias, estultices, fakes e mitos? E o mais importante: como reverter a sua exacerbação, antes que ela ponha em risco a democracia e desgaste ainda mais a humanidade que há em cada um de nós?

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Paulo Roberto Junior é jornalista e mestrando do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro).