Meu ofício está em extinção, isso não é novidade para ninguém. Em breve, só encontraremos postos de trabalho na memória afetiva de uns poucos, como aconteceu com os entregadores de leite e acendedores de lampião. Realidade na mesa, resta ao pessoal da minha turma buscar outras formas de se mostrar útil, relevante, enfim, remunerável. “Temos todos que nos reinventar”, dizem. E muitos conseguem brilhantemente. Mas não vou fazer isso, não.
Sempre fui um ferrado na vida, tinha umas ideias de jerico mesmo. Meus pais eram duros, mas eu queria ler jornal todo dia, gibi todo dia, revista sempre que possível, livro o tempo todo. Deus sabe como, consegui. Minha mãe comprava como podia do vendedor de enciclopédias (outra profissão extinta), meu pai descolava jornais aqui e ali, minha tia usava seus trocados me comprando fascículos de tudo que é coleção, eu reciclava gibis. Isso. Tinha um acordo com jornaleiro: comprava um e, se devolvesse em menos de uma hora em boa forma, podia trocar por outro.
Era o que se chamava na época de moleque estudioso. Fiz o discurso de inauguração do meu colégio na Cidade Alta, conjunto habitacional estilo Brasil Grande – para quem não tem a referência, foi onde foi filmado a maior parte de Cidade de Deus. Ou seja…
Passei para a (na época) Escola Técnica Federal, o que era meio uma pequena façanha. Ia ajudar a projetar estradas, conhecer o Brasil. Mas tinha as minhas ideias de jerico… Escrevia o tempo todo, meu apelido era “Le Grand Poète”, ou Legrand, que depois acabou virando Lorran, mesmo. No último semestre, bateu a crise definitiva e disse para minha mãe que queria ser jornalista, que só podia ser jornalista, que nada mais seria a não ser…
Era espetacular trabalhar no JB
Com o curso técnico nas costas, estava despreparado para um vestibular. “Particular, ela é particular”, igual ao Martinho. Mais uma vez, minha mãe segurou a onda e me preparei feliz da vida, por quatro anos.
Fiquei no desespero por um ano, mas graças a Oldemário Touguinhó, comecei a colaborar com o Caderno de Crítica, da Embrafilme, editado por José Carlos Avellar. Só conhecer esses dois já teria valido tudo. Ah, a recomendação oldemariana veio através de meu pai, um ex-jogador de futebol que trabalhava no Maracanã.
Passei na prova do Globo, fiz um estágio danado de bom e fui repórter do Segundo Caderno por cinco anos, com uma equipe que, não fosse o complexo de inferioridade que o jornal tinha na época, poderia ser considerada lendária. Parecia que não podia ficar melhor, mas… tinha o JB!
O jornal que eu exigia aos domingos na infância, aquele que acompanhou toda minha juventude, aquele que todo mundo achava melhor que o Globo, mesmo quando o Globo fazia coisas bem mais legais. Pois é, esse aí. Foram 10 anos espetaculares, sempre com Cultura e Esporte e mais uma coluna sobre televisão. E quer saber? Todas as lendas são verdadeiras: era simplesmente espetacular trabalhar lá. Mas aí chegou o Tanure e babau…
Por acaso, era trabalho
Tive um tempo bacaninha no Lance e depois chefiei uma equipe jovem, vibrante e talentosa no Caderno D (o segundo) do Dia, num total de quase mais oito anos. Enquanto isso, redações iam fechando, gente boa posta na rua, os tais postos de trabalho desaparecendo e, ao mesmo tempo, surgindo essa necessidade de se “reinventar” que virou o mote de meus antigos colegas de profissão.
Entendo plenamente. Primeiro, as pessoas precisam sobreviver. Segundo, boa parte dos meus pares queria mesmo era ser escritor, ou cineasta, ou publicitário, ou poeta. Muitos fizeram isso, o que explica, por exemplo, o gigantesco número de livros lançados por jornalistas de origem que abastecem periodicamente o mercado. Outros viraram especialistas em alguma coisa: arte, dança, mercado financeiro, infindáveis tipos de consultorias etc. Tudo válido, profissional e que não merece qualquer tipo de crítica. São trabalhos bem desenvolvidos, que atendem às exigências de mercado etc. Mas isso não é para mim, sabe.
Não foi para isso que varava madrugadas vendo TV, que naquela época exibia Truffaut, Fellini e Antonioni nesses horários, sabia? Eu estava, inconscientemente, me preparando para um dia ser editado pelo Avellar. Eu lia aquela porcaria toda que me passava pelas mãos para um dia ser elogiado pelo Humberto Vasconcellos, pelo Xexéo. Me preparei a vida inteira, mesmo quando não sabia disso, para exercer essa profissão.
Optar por ela, no meu caso específico, significava apostar no improvável e exigir um sacrifício extra de minha família, tudo para fosse feliz e bem sucedido, explorando o máximo de minha capacidade. E isso aconteceu. Se fosse para trabalhar e sobreviver, se fosse para tocar a vida e ganhar apostas, eu teria continuado a trilhar pelas estradas da vida, provavelmente depois faria Engenharia, daria minha contribuição e colheria minha merecidas recompensas de outra maneira.
Mas jornalismo para mim não era isso. Era o maravilhoso milagre de ganhar meu sustento me divertindo imensamente, me sentindo relevante, conhecendo gente e lugares. Por acaso, era trabalho entende? É isso. Eu simplesmente era feliz e, por acaso, era trabalho.
“Escreve um livro”, “Pensa aí num projeto para gente ganhar dinheiro”, “Faz um blog”, “Vamos criar um canal de humor”. Eu escuto essas e outras toda semana. Mas não vai rolar. Não vou me reinventar. Essa provavelmente é maior de todas as numerosas ideias de jerico que tive na vida, mas, novamente, vou seguir o instinto. Se vou chegar a algum lugar? Sinceramente, não tenho a menor ideia. Mas não vou me adaptar.
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João Carlos Pedroso é jornalista