Publicado originalmente no site objETHOS
O anúncio das decisões do Grupo NSC sobre o destino de seus quatro jornais fez de 16 de outubro de 2019 um dia infelizmente histórico para o jornalismo catarinense. O maior conglomerado de comunicação do estado dispensou 26 jornalistas em Florianópolis, Joinville e Blumenau, e informou que Diário Catarinense, A Notícia e Jornal de Santa Catarina deixarão de circular impressos a partir de 26 de outubro. Segundo a NSC, os maiores títulos da imprensa do estado serão meios online, direcionando suas matérias ao portal NSCTotal, e só serão impressos aos sábados, na chamada “super edição”. O diário Hora de Santa Catarina, o jornal mais popular do grupo, nem isso terá. Vai abandonar de vez as impressoras e chegar aos leitores em plataforma digital online. A notícia alvoroçou jornalistas e leitores, e os comentários mais comuns em redes sociais eram de tristeza e desolação.
O anúncio das mudanças na NSC foi feito por nota no meio da tarde. Às 15h15, o grupo informava em seu site institucional que estava alterando sua unidade de jornais, o que significaria “uma ampliação e atualização permanente da produção de conteúdo”. Em nenhum momento do comunicado de 48 linhas o conglomerado mencionou as demissões. De acordo com o Portal Making Of, reuniões por videoconferência entre as redações de Diário Catarinense, A Notícia e Jornal de Santa Catarina dariam mais informações aos funcionários. Além disso, a página de assinaturas das modalidades impressas saiu do ar. Segundo o Making Of, dirigido pelo experiente Claiton Selistre, que esteve à frente do jornalismo da RBS por 25 anos, as demissões “atingem seriamente a capacidade de produção dos três veículos”.
No final do dia, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, Aderbal da Rosa Filho, ainda contabilizava as perdas. Quatro jornalistas haviam sido desligados em Joinville, cinco em Blumenau e outros dezessete em Florianópolis, além de profissionais das áreas administrativa e gráfica. Com a interrupção das impressões diárias de todos os seus jornais, a NSC deve anunciar mais dispensas no setor gráfico e operacional. O sindicato criticou a onda de demissões travestida em “transformação digital”, manifestou solidariedade aos jornalistas e colocou sua assessoria jurídica à disposição dos demitidos. Causas trabalhistas podem ser propostas individual ou coletivamente.
Passaralho histórico
No meio jornalístico, demissões em massa são chamadas de “passaralho”, termo jocoso que alude a uma maligna ave que dá rasantes impiedosos nas redações, extinguindo postos de trabalho. O cinismo da palavra funciona como uma forma de blindagem diante da indignação, da surpresa e da tristeza de ser descartado. Não é segredo nenhum que a extinção dessas vagas no mercado tem acontecido em todo o mundo no jornalismo, sinalizando parte de uma crise sem precedentes. O Volt Data Lab até criou um projeto chamado A Conta dos Passaralhos, que monitora essas demissões no país e que, até agosto, somava mais de 2,3 mil jornalistas. O episódio da NSC vai obrigar a uma nova atualização nas contas, mas é preciso entender que a crise do jornalismo não é apenas financeira. Essa é a parte mais visível, passível de ser contabilizada.
Há problemas na governança jornalística de um modo geral. A confiança está em queda, a credibilidade segue sendo ameaçada, o protagonismo no processo de informação à sociedade se dissolveu e há cada vez mais questionamentos sobre a capacidade de produtos e serviços jornalísticos atenderem níveis satisfatórios de qualidade e atendimento de expectativas do público. A demissão de 26 jornalistas no grupo NSC é uma medida da crise, mas seu impacto vai além da extinção de vagas para profissionais no estado. Ela faz parte de uma história que começa na década de 1990, quando o Grupo RBS avançou sobre o mercado de jornais em Santa Catarina e comprou o Jornal de Santa Catarina, em 1992, e A Notícia, em 2006. O conglomerado, que já era forte nos segmentos de rádio e televisão, e que tinha um título líder na capital do estado – o Diário Catarinense, criado em 1986 -, conseguiu construir sua hegemonia no segmento impresso nas três maiores cidades catarinenses: Florianópolis, Joinville e Blumenau. Mais que isso, impôs um padrão técnico e editorial, normatizou rotinas e domesticou o mercado.
Do ponto de vista dos jornais de maior circulação, foi a criação de um monopólio. Em 2016, num lance inesperado, o Grupo RBS vendeu todas as suas operações a empresários absolutamente inexperientes no setor e a família Sirotsky passou a atuar apenas em seus negócios de comunicação no Rio Grande do Sul. A saída da RBS de Santa Catarina causou estranheza e rumores, mas a chegada dos novos proprietários também gerou desconfiança, conforme manifestei em março daquele ano. Em linhas gerais, eu era cético que as mudanças pudessem beneficiar os públicos. Meu diagnóstico era de que o negócio tinha sido muito bom para os compradores porque passariam a controlar “uma marca forte, uma estrutura consolidada e um mercado servil”. O anúncio das demissões de ontem e a desidratação de seus quatro jornais diários mostram que os gestores não foram capazes de preparar a unidade de impressos para os desafios que já se desenhavam à época. A rigor, a NSC comprou quatro jornais para fechá-los.
Teria sido diferente com outro grupo? É impossível responder com certeza, mas o fato é que as decisões significam um encolhimento inédito do mercado jornalístico local. Em muito pouco tempo, veículos de comunicação históricos podem deixar de existir, e suas comunidades podem avançar rapidamente para a condição de desertos de notícia. Essa expressão – “desertos de notícia” – explica as cidades onde não há meios de comunicação locais que cumprem o papel de informar, gerando consequências sobre o nível de informação de seus habitantes e repercussões ainda insondáveis sobre a fiscalização dos poderes, a defesa da democracia e o exercício da cidadania. O projeto Atlas da Notícia estima que 70 milhões de brasileiros vivam em desertos de notícia e que 2/3 dos municípios no país têm um ou nenhum meio local de informação.
Preparados?
O anúncio das mudanças nos jornais da NSC não foi criticado apenas pelo Sindicato dos Jornalistas. O também experiente César Valente, que acompanha os movimentos no mercado local, colocou em xeque a retórica do grupo e a estratégia para atrair novos leitores. Citando a nota que a NSC dirigiu a seus leitores, Valente escreveu: “Não acho que oferecer prêmios ou ter um programa de ‘milhas’ seja ruim. É um complemento que pode ser útil para tentar quebrar a inércia dos leitores, que se recusam a pagar pela informação online (compravam o jornal de papel na banca sem problema, mas quando se trata de pagar pelo jornal na tela, resistem). Mas não acredito que o leitor que realmente interessa, o formador de opinião, vá recomendar ou falar bem do jornal só porque tem um ‘número da sorte’. Valente se refere à Promoção Sorte Total, em que o leitor concorre a prêmios ao ler a edição online.
A ação repete o lançamento de Hora de Santa Catarina, em 2006, quando o leitor colecionava selos impressos no jornal e os trocava por brindes. Voltado às camadas mais populares, o jornal aproveitou movimentos bem-sucedidos no país de abrir o mercado de consumo, atraindo parcelas da população antes ignoradas ou não atendidas. Foi o tempo em que surgiram fenômenos de banca como Super Notícia, em Minas Gerais, Extra, no Rio de Janeiro, e Diário Gaúcho, em Porto Alegre. A Associação Nacional dos Jornais (ANJ) batizou esses títulos de populares de qualidade, e eles foram responsáveis por atrasar a crise dos impressos no país, uma crise que Estados Unidos e Europa já viviam na virada do século.
A retórica da NSC é frágil e pouco convincente. É difícil acreditar que demitindo jornalistas se possa “ampliar o conteúdo” e que, ao fazer isso, se possa chegar de forma “mais ágil e acessível” onde o “público já está”, conforme afirmou Mário Neves, presidente da NSC no comunicado oficial. O raciocínio embute a ideia de que só é possível alcançar mais público com uma equipe menor, com operações concentradas, mas e as especificidades dos mercados locais de informação? Grande parte do sucesso do Jornal de Santa Catarina e de A Notícia nas décadas de 1980 e 1990 vinha da estreita conexão que esses diários conseguiram com suas comunidades. O Diário Catarinense tentava chegar aos leitores de Joinville, mas havia muita resistência na região porque o jornal tinha um escopo muito concentrado na capital do estado. Analistas dão conta de que a investida da RBS para comprar A Notícia foi uma estratégia inadiável para conquistar o mercado dos jornais impressos no norte e na maior cidade do estado. Em Blumenau, uma espécie de capital da região do economicamente pulsante Vale do Itajaí, foi o mesmo.
O anúncio repercutiu como se os jornais estivessem sendo fechados e é incontornável pensar o contrário. Os títulos não ficarão mais fortes nem serão ressuscitados nas bancas. Não se sabe ainda o que a NSC vai fazer para que o jornalismo local nessas regiões não seja completamente abandonado. A edição de final de semana em formato de revista impressa deve se concentrar em colunistas, de forma a oferecer um mosaico no estado, mas Santa Catarina tem um panorama muito plural e diversificado, difícil de ser condensado num título. A história mostrou que, para tentar se viabilizar como um jornal de caráter estadual, o Diário Catarinense precisou recorrer à criação de sucursais nas regiões, originando planos complexos de logística para atender as expectativas de seus públicos.
Era necessário fechar a edição de forma bem antecipada para chegar aos leitores do oeste do estado, por exemplo, de modo a oferecer a eles uma capa com sotaque local. Acontecia o mesmo com outras cidades importantes, e isso foi possível durante algum tempo, mesmo causando distorções como o fato de que, nas cidades mais longínquas, circulavam edições ligeiramente menos atualizadas do que na capital. O modelo das sucursais funcionou por um período, mas se mostrou custoso, sendo interrompido na sequência. O episódio mostra como aspectos como proximidade, localidade e compromisso estreito com a comunidade regional são vitais para a manutenção do jornalismo.
A estratégia da NSC de, paulatinamente, deixar de lado seus jornais impressos e de concentrar os esforços no meio digital está em curso há três anos. Outras empresas do setor fizeram o mesmo, e a Gazeta do Povo, de Curitiba, é o exemplo mais próximo. Mas há uma diferença sutil entre os casos. A Gazeta comunicou o movimento em 10 de abril de 2017 e só desligou as impressoras em 31 de maio daquele mesmo ano. A NSC deu uma sobrevida de suas edições em papel de apenas dez dias! A partir de 26 de outubro, seus jornais não estarão mais diariamente nas bancas.
O que esperar?
A decisão da NSC é um duro golpe no jornalismo catarinense, pois afeta as três cidades mais potentes economicamente do estado e faz um movimento publicamente brusco nos seus negócios. Assim que comprou as operações da RBS em Santa Catarina, em 2016, a NSC se apressou a tranquilizar o setor produtivo, o governo e a sociedade de que nada mudaria muito drasticamente. A retórica era esperada, pois tudo o que se quer é não provocar tremores num mercado em que se está tomando posse e conhecendo. Os anúncios produzem efeitos em diversos planos da vida social catarinense.
As demissões não fizeram distinção etária ou de geografia. Foram dispensados profissionais muito tarimbados e jovens talentos que disputam, inclusive, prêmios locais de jornalismo. Nas primeiras horas depois do comunicado, nas redes sociais, se via uma cena cada vez mais frequente: repórteres e editores anunciando suas saídas dos veículos, atenuando que seus ciclos de permanência haviam terminado. Nos comentários aos posts, leitores eram solidários e desejavam sorte nos novos desafios.
Não é exagerado esperar efeitos negativos e quedas de negócios nos meios publicitários de Florianópolis, Blumenau e Joinville, recrudescimento no mercado de impressões gráficas e abalo até mesmo nos cursos superiores de jornalismo nessas cidades. A opção por fortalecer um único portal noticioso – o NSCTotal – não é suficiente para estancar o pessimismo que deve se espalhar pelo estado. Isso se deve, sobretudo, ao tamanho da NSC no mercado local. Proprietário de jornais nas cidades mais proeminentes, o grupo detinha também as maiores tiragens e abocanhava a fatia mais generosa das verbas publicitárias para o segmento. O anúncio de ontem é um marco na história da concentração de mídia no estado e no país, pois mostra como o oligopólio é uma prática que não serve nem à sociedade nem ao mercado. Concentrar qualquer atividade econômica em poucas mãos dá imenso poder aos operadores do setor e grande peso a suas decisões. No caso da NSC, é possível dizer que havia um monopólio do segmento de grandes jornais no estado, o que não necessariamente abastecia a sociedade de mais e melhores informações, mas certamente dificultava a concorrência e a competição.
O enxugamento das operações nos meios impressos significa que a NSC está abrindo mão de um segmento que considera inviável ou pouco sustentável. Em termos práticos, ela abandona e encolhe o mercado tradicional, deixando à míngua alguns aspectos que são muito mais políticos e cívicos do que comerciais. Sem os jornais circulando nas localidades, o provimento de informações nativas é interrompido e funções públicas, como a fiscalização dos poderes mais paroquiais, são abandonadas. As audiências catarinenses tendem a ficar menos informadas, menos conectadas à vida social e política de suas cidades, e sua cidadania se fragiliza.
Um teste para o novo modelo da NSC está logo ali. Em 2020, teremos eleições nos 295 municípios catarinenses – e cobrir as campanhas eleitorais, os movimentos das siglas partidárias e os tensionamentos próprios dessa época podem dar a real dimensão de que não se pode deixar leitores desinformados e à própria sorte. Espero que a estratégia da NSC se preocupe com esses aspectos, pois parte da força da democracia local reside na condição de eleitores bem informados, dispostos a tomar melhor suas decisões. Caso contrário, outros grupos ou empresas, plataformas ou atores poderão se apossar de algo inestimável: a confiança e a fidelidade do público.
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS.