O governo interino Temer começa cheio de problemas. A começar pelo mais grave de todos: uma enorme fatia da população, que talvez gire em torno de 30 a 40%, não reconhece sua legitimidade. O movimento #naovaitergolpe encorpou ao longo do processo de impeachment e gradualmente — com “apoio” das hordas fascistas que passaram a atacar pessoas com roupas vermelhas, criar listas proibitivas e recusar atendimento médico a pessoas com crença ideológica diversa — conglobou forças além das apoiadoras do indefensável segundo mandato de Dilma. Para evitar incompreensões, já vou avisando que não estou reduzindo todos os defensores do impeachment e antipetistas ao rótulo de fascistas, mas de fato houve um instante — especialmente na euforia paranoica pós-divulgação do grampo Lula/Dilma — em que essas forças realmente provocaram um acender da luz amarela da democracia.
Isso motivou uma composição heterogênea que encorpou nas últimas semanas e hoje engloba as ocupações no MinC e protestos de rua contra Temer. Em resposta, Temer tem vacilado e concedido alguns pontos: hesita em anunciar reformas trabalhista e previdenciária desejadas pelo mercado, recria o MinC, afasta possíveis ministros. Ao mesmo tempo, para piorar o cenário temeriano, vazam grampos de Jucá, o breve “superministro”, Renan e Sarney indicando uma articulação para abafar a Lava Jato, explicitando que a principal motivação da destituição de Dilma era essa, como previa Marcos Nobre[1], em especial, e outros.
Aliás, Marcos Nobre acertou por várias razões, dentre as quais arrolaria (escrevi isso originalmente no Facebook): 1) passou uma gigantesca Navalha de Ockham sobre todas as conspirações, motivações subliminares e outras formulações paranoicas que existem no imaginário da análise política brasileira por todos os lados e reduziu as tensões à superfície, retirando qualquer “aura” de segredo para além do que está expresso; (2) passou ao lado de um enviesamento extremado que silencia o outro lado (no caso dele, seria identificado com a esquerda), preferindo dar significado a tudo que aconteceu nas ruas, mesmo em formulações mais conservadoras, e a aliança informal que se estabeleceu com o Judiciário contra o sistema político como um todo (a “casta”, como o próprio Juca reconheceu); (3) colocou 2013 como o evento mais decisivo, verdadeiro fim de um ciclo e início de um novo, que renova todo cenário político brasileiro. E, não custa lembrar, Nobre acertou também porque vem colocando no centro do debate político brasileiro o pemedebismo.
O Centrão
O PMDB e seus partidos miméticos ocupam o espaço que, desde a Constituição, é chamado de “Centrão”. Após o impeachment de Collor todos os governos, diz Nobre, promoveram o grande acordo com “governabilidade”, mobilizando uma “supermaioria” no Congresso Nacional a partir da fisiologia. O preço disso, segue ele, é que os debates públicos ficam paralisados, já que as bancadas costumam utilizar o “veto” como forma de expressar seus interesses. Isso vale desde temas mais macropolíticos, como reforma tributária e política, por exemplo, até os micropolíticos, como o casamento homoafetivo e as políticas educacionais para ensinar o respeito à população LGBTT.
O governo Lula teria pagado um preço alto por ter tentado “comprar no varejo” o apoio político, redundando no Mensalão e no quase impeachment do presidente, passando então a optar pela aliança com o “condomínio pemedebista” a partir de 2005 para garantir a governabilidade. Assim, o PT teria promovido uma “ocupação à esquerda” do pemedebismo, tornando-se “síndico” do condomínio. Acontece que, ainda segundo Marcos Nobre, o pemedebismo seria o principal obstáculo à formação de uma democracia consistente no Brasil. Na medida em que operaria por bloqueio, despolitizaria a esfera pública e a transformaria em balcão de negócios. Por isso, o filósofo intitula seu livro sobre 2013, lançado no calor dos acontecimentos e junto com seu Imobilismo em Movimento, de Choque de Democracia. O título deve-se à natureza do evento: 2013 teria sido, antes de tudo, uma composição de “revoltas antipemedebistas”.
E Nobre não se intimidou diante da patrulha da bipolarização que desde 2013 tenta sufocar esse novo campo emergente na disputa entre tucanos e petistas, ou coxinhas e petralhas. Ao longo de 2014 e 2015, ele expôs diversas vezes nas colunas que assina a tese que a Lava Jato seria uma operação independente e antipemedebista travada a partir da aliança entre Poder Judiciário, Ministério Público e ruas de 2013, sendo as últimas a “blindagem” que permitiram a essas instituições atuar com independência e até certa impetuosidade. Contra a maioria dos seus interlocutores, Marcos Nobre não se rendeu à retórica da “perseguição seletiva” da Lava Jato e preferiu, em vez disso, visualizar ali uma demanda das ruas que encontrou mediação institucional.
Na verdade, antes de Marcos Nobre o também cientista social e ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso disse que PT e PSDB lutavam para ver quem comanda o “atraso”. Trata-se da disputa pela posição de “síndico” do condomínio pemedebista que fez com que Renato Janine Ribeiro, há uma década, chegasse a defender a hipótese de aliança entre os dois (rechaçada, no entanto, por José Dirceu e pelos tucanos). Mas que enigma é esse — o PMDB — e como sobrevive?
O mercado já começa a mandar sinais de desconfiança de Temer. Parecem faltar convicções ao mandatário para fazer as “reformas necessárias” que o Brasil precisa. Temer e seus ministros parecem ceder a pressões e desmentem todo planejamento que sinalize com um liberalismo mais radical. É preciso lembrar, nesse sentido, que o PMDB não é um partido liberal ou neoliberal, mas patrimonialista. Por mais que seja insistentemente criticada, a tese do patrimonialismo resiste.
As oligarquias brasileiras — principais habitantes do PMDB — são, antes de tudo, ocupações privadas do Estado. E sobrevivem, em uma democracia, com um híbrido de fisiologia, clientelismo, corrupção e estratégia. Para tanto, elas precisam manter o debate em banho-maria, sem mudar radicalmente o status quo a fim de preservar o equilíbrio que as mantém no poder. Lembremos, nesse sentido, que as tendências mais liberais do Governo FHC nunca conseguiram se impor totalmente. A hipótese do patrimonialismo, por si só, não demoniza o Estado: ela, ao contrário, o reivindica contra sua apropriação privada pelas elites “donas do poder”.
O que parece estar ocorrendo está mais próximo de uma manobra defensiva de sobrevivência dessas oligarquias que foram o alvo mais direto dos movimentos de 2013. A cara do ministério de Temer — sem representatividade e diversidade — indica que seu governo é o “velho” tentando se segurar nas cordas. O sacrifício de Dilma é a tentativa de “despressurizar”, abrir a válvula da panela de pressão que as redes que vão do âmbito digital até as ruas exercem. Não há qualquer indício que Dilma tenha caído por ser de esquerda.
Os supercampões e as oligarquias
No início, inclusive, Dilma era conveniente porque o desenvolvimentismo — ao potencializar investimentos estatais — permite abrir as comportas do dinheiro público para o financiamento partidário mediante acordos entre “supercampeões” e oligarquias políticas. Mas aí apareceu a Lava Jato, embalada pela demanda por moralidade da classe média mais à direita que é “música para os ouvidos” do Ministério Público e do Judiciário (instituições repletas de indivíduos com esse perfil sociocultural), atropelando a organização. É preciso um negociador mais hábil que Dilma para neutralizar essa “alcateia de javalis” que ameaça passar sobre o sistema político. Se os motivos de Cunha podem ser mesquinhos (está muito claro que o próprio PMDB o percebe como “baixo clero”), para os “cardeais” (Jucá, Renan, Sarney), que são o fiel da balança do poder no Brasil, a estratégia é bem nítida.
Mas a aposta de Temer pode ser intempestiva. Parece que o processo de desconstrução do Brasil foi longe demais para que as velhas oligarquias possam o controlar. Os recuos, as críticas ferozes que foram instantaneamente aparecendo, a desconfiança do mercado e a grande parcela que não reconhece o governo ameaçam sua permanência. Há grandes chances, contra os que esperavam a “reconciliação”, de Temer cair.
Nesse sentido, é preciso ver que a sociedade brasileira pós-lulista mudou significativamente. O Brasil do século XXI é diferente, como escreveu Eliane Brum recentemente. Apesar do perfil conciliador que tornou Lula um aglutinador de forças heterogêneas, formando um “pacto conservador” em matéria política, o lulismo catalisou a organização de amplos setores da sociedade que em 2013 explodiram. A demanda pelo aprofundamento democrático, portanto, pode ser lida como “modernização do país”, isto é, estilização de uma nova polarização política, de novos campos ideológicos e o rechaço ao centro fisiológico. Claro que isso pode significar também explosão de sectarismo, na medida em que o centro encolhe, mas também podemos olhar esse processo como uma inconformidade com o “imobilismo” que o pemedebismo joga o país. Essa luta é comum a novos grupos de direita e de esquerda.
No meu texto Juventude em Chamas, defendo, apoiado em Marcos Nobre e Renato Janine Ribeiro, que teríamos em 2013 a emergência de dois campos que atacariam simultaneamente o Centrão. Eu escrevi ali:
Cabe lembrar quanto a isso uma antiga análise de Renato Janine Ribeiro que certa vez dividiu a esquerda (PT) e direita (PSDB) no Brasil em “democratas” e “republicanos”. Enquanto o PT tenderia a uma democracia de alta intensidade, o PSDB tenderia a uma austeridade no trato da coisa pública . Hoje em dia, parece que os dois polos políticos perderam a capacidade de significar essas ideias (não por acaso ambos aparecem para Nobre como os que lutam pela administração do condomínio pemedebista). Por isso, de certo modo os movimentos foram uma espécie de ação direta, não mediada, que contou com todos os setores da sociedade. O que tinham em comum nesse segundo momento em que os movimentos-rede se tornaram “ecossistema” era a revolta contra o pemedebismo, na medida em que essa cultura política é ao mesmo tempo anti-republicana e anti-democrática. O “atraso”, como se costumava chamar as oligarquias políticas ainda em linguagem teleológica, viu-se subitamente emparedado pelas manifestações de 2013.
A reconfiguação da cena política nacional
Podemos visualizar, assim, um desejo de reconfiguração da cena política que é reprimido pelas forças da bipolarização, de um lado, e pelo Centrão (que se alimenta dessas forças), de outro. O campo “republicano” está se reorganizando em torno do liberalismo e se divide entre liberais conservadores e liberais progressistas. O campo “democrático” está se reorganizando entre trabalhistas, (ecos)socialistas e anarco-ecologistas. No centro, que corresponde à maioria, estão os social-liberais (as pesquisas de Pablo Ortellado, Esther Solano e Lucia Nader em torno do perfil dos Anti-Dilma na Paulista indicam que a maioria não adere ao liberalismo radical, admitindo ampla gama de serviços públicos).
Há também um campo fascista-conservador surgindo de modo mais orgânico, inspirado em “gurus” da Internet e por Bolsonaro, fortemente anticomunista e lutando contra a flecha do tempo dos movimentos sociais identitários. Rede, Raiz e Novo podem compor esse rearranjo de forças ao lado do PSOL e talvez um PT renovado (o partido ainda mobiliza desde baixo, ainda que sua direção seja quem realmente dá as cartas) e o PSDB (se assumir de vez perfil liberal — ou morrerá). Todas essas forças podem compor em torno da pauta comum do isolamento do atraso e a construção de uma “nova política”, provavelmente mediante uma ampla reforma política.
Para isso, porém, será necessário que os agentes da bipolarização — que no fim das contas lutam para comandar o atraso — percebam que essa chave de leitura não funciona mais desde 2013. O sucesso do lulismo promoveu o movimento das placas tectônicas que formam a sociedade brasileira. Eliminada a indignidade máxima da nossa sociedade — a miséria extrema — emergiu uma nova classe que hoje compõe os dois setores que não se encaixam na polarização: de um lado, movimentos à esquerda com visão distinta do desenvolvimentismo do PT; de outro, segmentos de empreendedores microempresários identificados com livre mercado e meritocracia.
Não vai existir democracia real enquanto não houver espaço para que essas duas visões de mundo antagônicas possam disputar espaço na esfera pública. E é preciso que tenhamos a maturidade de aceitar, de lado a lado, a existência e convivência adversarial dessas duas perspectivas. O PMDB e seus imitadores (PP, boa parte do PSB, PR, PRB, Solidariedade, PROS) são o obstáculo para esse debate. Enfraquecer esses setores — que hoje são a cara do Governo Temer — é a condição sine qua non da democracia brasileira do século XXI. Ou derrubamos essa tentativa de “grande restauração” contra 2013, ou seremos engolidos pelos zumbis que perseveram a nos devorar.
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Moysés Pinto Neto é blogueiro, escreve sobre política, música, futebol e filosofia
[1]) Marcos Nobre é filósofo e cientista politico, professor da UNICAMP e colunista do jornal Valor Econômico.