No fim de abril, cerca de 120 líderes de redações e empreendedores jornalísticos digitais de mais de 30 países, reunidos em Copenhague na Conferência Mundial de Liberdade da Mídia, passaram por um exercício de ética editorial. Em um primeiro momento, foram confrontados com a seguinte questão: “Um grupo terrorista sequestrou um repórter de uma emissora concorrente em ação em outro país e ameaça matá-lo caso essa informação seja divulgada. O diretor de jornalismo concorrente entra em contato com você e pede para não levar a informação ao público. O que você faz?”
Na convicção de que uma notícia não deve colocar vidas em risco, 95% dos presentes concordaram que o motivo era forte o suficiente para não divulgar o sequestro.
Em seguida, veio a segunda parte do exercício: “A informação vazou no Facebook e já tem mais de 100 mil likes. Agora, qual é a sua postura?”
A ampla maioria dos participantes mudou na hora de opinião. Uma vez que as redes sociais deram publicidade, não haveria mais sentido em manter o silêncio.
O que o exercício revela, além da óbvia subjetividade implícita em decisões éticas? Que, em última análise, ao editor já não está mais reservada a hegemonia da decisão editorial. Um princípio básico da atividade de editor – o que deve ser divulgado e de que forma – está agora terceirizado ao Facebook e a seus irmãos menores. Virou lugar-comum nas redações a constatação da perda desse controle moral para a turma do “dane-se” e “arrebente-se” das redes. Não raro, enquanto um grupo de editores discute como levar ao público o que ainda é apenas uma suspeita, o vale-tudo das redes já se ocupou de julgar e condenar ao inferno o acusado. Todo dia passou a ser dia de Escola de Base.
O fim do domínio da ética editorial pelas redações poderia ter até um efeito benéfico quando se leva em conta a saudável exigência de maior transparência em qualquer atividade – o jornalismo bem no alto dessa pirâmide. No entanto, quando a motivação da divulgação de um fato se subordina a interesses particulares, e não coletivos, como ocorre a todo instante nas redes, a ética do jornalismo profissional não é o primeiro valor a ser pesado. Mais grave: boa parte do que zune pelas redes é mera fantasia ou trucagem com motivações que variam da ingenuidade à busca do poder a qualquer preço. Objeto sagrado das melhores redações, o guia de ética é, naturalmente, um artefato desconhecido em vastas porções das mídias sociais.
As consequências perversas da produção caseira de informação adulterada ou sem aval ético são apenas a ponta do iceberg dos efeitos da terceirização da decisão editorial. Ao mesmo tempo que um anônimo pode apertar um botão e implodir a reputação de qualquer semelhante ou organização sem se deter em critérios morais, as plataformas sociais criam em escala planetária zonas de sombra ou luz informativas com base em conveniências exclusivamente comerciais, com enorme repercussão sobre o desenvolvimento ou involução das sociedades.
A um editor do século 20 cabia avaliar as circunstâncias da notícia, sua origem, relevância e atratividade, enquadrá-la em parâmetros éticos e de precisão para então dimensioná-la aos padrões gráficos, de espaço, periodicidade e interesse público do veículo a que ele prestava seus serviços. Baseado em uma linha editorial e na técnica jornalística, mas, em particular, no seu talento e na sua percepção editorial, o editor dava forma e vida ao que o público tomaria enfim conhecimento. Quem viveu um dia em uma redação profissional sabe que este segue sendo um processo complexo, nada cartesiano, repleto de idas e vindas e correções de rota. Erra-se e avalia-se bem ou mal uma notícia, mas, em sua esmagadora maioria, redações estão ancoradas ao compromisso de entregar o melhor produto editorial possível para o público e, em última análise, para a sociedade.
Pois é. Esse mundo da realidade distribuída exclusivamente por dutos jornalísticos morreu ou, pelo menos, está em estado vegetativo. Embora editores continuem tomando decisões – um estudo com executivos indicou que eles são os profissionais com maior número de encruzilhadas diárias –, essas decisões já não são definitivas aos olhos do público.
Lógica fria
Com a explosão de conteúdos via redes, cada vez mais é um algoritmo que decide o que e quando você vai ler, ver, saber. Em suma, a difusão de informação, restrita antes a jornalistas, está se transferindo para as mãos de um exército de engenheiros no Vale do Silício que não têm por que se ocupar de qualidade ou ética editoriais. O negócio deles não é jornalismo: é capturar usuários que entreguem informações sobre suas vidas e digam o que lhes passa pela cabeça, traduzir essa audiência em dados e distribuir publicidade personalizada. É mais ou menos como se os departamentos comercial e de marketing assumissem o lugar da redação, com a diferença de que, com o algoritmo sentado na cadeira do diretor, não há com quem argumentar ou brandir regras de conduta – apenas a submissão à sua lógica fria e diabolicamente eficaz.
Em outras palavras, essa terceirização do jornalismo foi magistralmente captada por Emily Bell, diretora do Tow Center for Digital Journalism, da Columbia University. Em uma conferência em novembro do ano passado no Reuters Institute, em Oxford, Emily dissecou a natureza do terremoto silencioso que ocorre neste momento. Algumas de suas considerações merecem ser recordadas aqui:
Ao criar incríveis ferramentas fáceis de usar e ao encorajar o mundo a publicar, as plataformas de tecnologia agora têm um propósito social e uma responsabilidade bem além de sua intenção original. A mídia convencional não entendeu o que estava perdendo, o Vale do Silício não entendeu o que estava criando.
O quarto poder, que gostava de pensar que operava em esplêndido isolamento de outros sistemas de poder e dinheiro, deslizou de repente e definitivamente para um mundo onde já não é dono dos meios de produção ou das rotas de distribuição.
Nenhuma outra plataforma na história do jornalismo teve a concentração de poder e atenção usufruída pelo Facebook.
Se se pode acreditar nos números ligados ao Facebook (1,3 bilhão de usuários, por exemplo), então o executivo de mídia mais poderoso do mundo é Greg Marra, gerente de produto do Facebook News Feed. Ele tem 26 anos.
Emily observa que nenhuma dessas novas e grandiosas plataformas de distribuição de conteúdo, como YouTube, Twitter, Linkedin, Instagram e outras, foi criada pela indústria de mídia ou por editores, mas por engenheiros. Podemos ir além: nossa penitência terrena se deve ao fato de terem sido engenheiros, e não as empresas de comunicação, os inventores de Adwords e AdSense, os instrumentos de publicidade via Google que sugam do mercado dezenas de bilhões de dólares todos os anos. É a perda dessa receita, somada àquela tragada pelo Facebook, que tem vaporizado sem perdão as redações de todo o mundo. A verdade é que estávamos aqui por uma missão: preservar um modelo que funcionava e, em última análise, gerava um impacto social com saldo amplamente positivo. Com a notável disposição de dar voz a tudo e a todos, os engenheiros do Vale do Silício vieram pôr isso abaixo e colocar um novo modelo no lugar.
Para tornar as coisas ainda mais candentes, o Facebook estreou em maio passado o Instant Articles, uma ferramenta que oferece aos veículos o poder de publicar textos e vídeos diretamente na rede social. Em troca, o Facebook promete entregar uma velocidade dez vezes mais rápida de carregamento, uma vantagem crucial na era mobile, além de 100% da publicidade vendida pelo veículo ou 70% daquela comercializada por ele. The New York Times, BBC News, The Guardian, National Geographic e muita gente boa foram os primeiros a pular para dentro do barco do Instant Articles. O que muitos viram como sinal decisivo de rendição, uma vez que os usuários do Face não precisam mais ser conduzidos por um link ao veículo de origem para ter acesso ao conteúdo, é encarado pelos pioneiros como uma oportunidade de chegar a um público que não poderia ser alcançado de outra forma. Ou seja, o raciocínio de parte dos meios é que, se você não pode vencer o adversário, melhor juntar-se a ele, com a ressalva de que, se não for bom, basta se levantar e bater a porta atrás.
Ética no mundo dos algoritmos
No último Congresso Mundial de Jornais e Editores, realizado no início de junho em Washington, moderei um painel com o sugestivo título “Quem gere as notícias?”. Emily Bell estava lá, junto com Tom Rosenstiel, um dos autores do clássico Os Elementos do Jornalismo (Geração Editorial, 2003), e Vivian Schiller, ex-diretora de news do Twitter, além de Liam Corcoran, do blog NewsWhip. Na introdução, procurei levantar perguntas cruciais para o nosso futuro. O Vale do Silício é a nova Fleet Street [rua que foi a sede da imprensa britânica até a década de 1980]? Se for verdade, quais as implicações desse novo sistema para a democracia? Qual a ética desse mundo em que algoritmos de empresas de tecnologia definem o que cada cidadão vai saber?
Essas perguntas, e muitas outras, vão pender sobre nossa cabeça por anos à frente, mas é exatamente aqui, neste divisor de águas onde há um remoinho que nos prende à atual crise de identidade, que os editores e seus veículos de variados calibres, de blogs a conglomerados de comunicação, encontram uma extraordinária janela de oportunidade para contra-atacar. Não se trata aqui de demonizar as redes. Elas vieram, viram e conquistaram seu terreno. É preciso assumir primeiro que o fenômeno é irreversível, a fim de que o jornalismo saia de sua letargia e salte para um novo nível, um novo ciclo no qual jornalistas profissionais e empreendimentos jornalísticos se posicionem muitos degraus acima da mundana disputa de audiência entronizada pela popular trinca BBB (bizarrices, bichinhos e bumbuns).
Nesse novo patamar, a solução para o jornalismo profissional não é menos jornalismo: é mais e, principalmente, melhor. Esse novo jornalismo deve fazer das redes sua alavanca para ampliar a relevância, mas não apenas na distribuição de conteúdo. O novo patamar exige que repórteres, editores e colunistas assumam o papel de certificadores. Mais do que narrar fatos de domínio público, caberá aos profissionais empregar sua técnica e talento para confrontar, desmontar ou endossar o que já circula por aí.
Pode-se argumentar que os millennials, a geração nascida entre 1981 e 1996, já não se importam tanto com as marcas, mas sim com os conteúdos, estejam onde estiverem. Pode ser, mas é da natureza humana, antes, agora e sempre, não querer passar recibo de idiota. O status de um indivíduo em um grupo é medido também pela sua capacidade de contar algo que os outros não saibam, e de que essa novidade seja correta. Se for um assunto velho ou incorreto, sobe o status de quem o atualizar e corrigir, e automaticamente cai o do humilhado. Pois o novo jornalismo deve fornecer, com apuração sólida, precisão absoluta e, antes de tudo, pauta focada naquilo que fará uma diferença, as ferramentas para que seu consumidor não seja envergonhado e possa subir de status em seu grupo social. O consumo ou não de jornalismo profissional de alta qualidade e densidade, enfim, será a linha de corte entre os bobos da corte e os sábios da aldeia.
Novos territórios
Em meio ao fog do campo de batalha, muitos empreendimentos jornalísticos já estão se erguendo e criando ou ampliando seus territórios. Vox, que veio para explicar e não confundir; Vice e Business Insider, com suas abordagens originais e ângulos inusitados; Publico, com exclusividade e análise em primeiro lugar; The New York Times, com intransigentes padrões de qualidade; e The Economist, com apuração, apuração e apuração que se reverte em profundidade e credibilidade, são exemplos da nova e antiga mídias convertidas ao papel de certificadores.
No velho mundo jornalístico, os veículos são pautados e controlados pelas redes. Em um novo patamar, eles terão de reassumir sua função de agendadores da sociedade ao erigir altares à exclusividade, identificar em primeira mão o que será tendência, transformar essa percepção em matéria-prima jornalística e introduzir, em todas as formas e plataformas, abordagens inéditas, noves fora o aval ou não de conteúdos já tornados públicos. O fact checking, tão comum em épocas eleitorais para contestar promessas de candidatos, deverá se tornar moeda corrente nas redações. O antídoto ao Facebook e seu poder revigorará as redações quando o jornalismo profissional for amplamente percebido como o ISO 14000 da informação. Se e quando isso se materializar em escala global, os editores não terão mais nostalgia do passado e os engenheiros voltarão a ser tão apenas engenheiros.
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Marcelo Rech é diretor executivo de jornalismo do Grupo RBS e presidente do Fórum Mundial de Editores, eleito em maio passado.