No dia em que o Independent anunciou que iria parar de publicar a edição impressa, fui ver Spotlight, o filme vencedor do Oscar sobre a equipe investigativa do Boston Globe. No clímax do filme, que investiga a exposição de um abuso sistemático de crianças pela igreja católica, veem-se as caminhonetes do jornal saindo da gráfica. É uma cena simbólica ilustrando o momento preciso em que parte das notícias alcança um público mais amplo. Esse simbolismo não se perderia com qualquer pessoa que se preocupe com o futuro do jornalismo independente – para não dizer o Independent.
Impressoras? Caminhonetes? Para o Independent, um jornal que editei por mais de 12 anos, as manifestações físicas de um jornal tradicional são obsoletas. A partir de agora, o jornal só existirá no formato digital e a noção de que existe um momento – talvez durante o café da manhã ou a caminho do trabalho – em que uma comunidade de pessoas com a mesma opinião passaria pela mesma experiência será apenas uma lembrança. The Independent, que nasceu em 1986 como uma trincheira contra a hegemonia dos barões da imprensa da Grã-Bretanha, sucumbiu à gravidade econômica e sua edição de nº 9.193 será a última a ser vendida em banca.
É quase um milagre que o jornal tenha durado quase 30 anos e, ironicamente – levando-se em conta suas origens –, isso ocorreu unicamente devido à tolerância de um proprietário dedicado, caridoso e muito rico: primeiro, Tony O’Reilly e ultimamente Alexander Lebedev.
O’Reilly, um homem que se fez bilionário por esforço próprio e que tinha uma rede de jornais lucrativa na Irlanda, na África do Sul e na Oceania, era proprietário do jornal haviam dois meses quando me nomeou editor, em maio de 1998. Na época, eu editava a revista Night & Day para o Mail on Sunday, embora estivesse no Independent desde o lançamento (como subeditor de esporte) e tivesse passado um período no jornal, em meados da década de 90, como editor da noite e editor de reportagens especiais.
O jornal tinha passado por um período difícil quando assumi o cargo de editor-chefe no lugar de Andrew Marr, e posso dizer tranquilamente que a minha nomeação foi uma surpresa para algumas pessoas e uma decepção para outras. Disseram-me que o piedoso Andreas Whittam Smith tinha ido até o chefe da redação para dizer que era “um desastre” e seu colega Stephen Glover, num texto caracteristicamente prepotente publicado pelo Spectator, disse que eu era uma pessoa que “jamais pisara num estabelecimento educacional decente”.
Um quadro preciso da força do jornal emergente
Minha própria mãe ficou desconcertada. Quando lhe telefonei para comunicar meu aumento de posição, ela perguntou: “O que é que aconteceu com aquela mulher que era a editora?” “Rosie Boycott?”, respondi. “Ela foi para o Daily Express.” “Ah, disse minha mãe. “Ela fez muito bem.” Pode tratar-se de um exemplo clássico de reação de uma mãe judia, mas, na opinião de pessoas mais informadas que minha mãe, eu assumira uma tarefa quase impossível.
Nos dias de hoje, parece incrível pensar que um dos presságios ameaçadores que me deu as boas-vindas ao assumir o cargo de editor foi o fato de a circulação diária ter caído abaixo de 200 mil exemplares. Mais incrível ainda: o jornal vendeu mais de 400 mil (em 1989). O último dado registrado de circulação do Independent provavelmente estará em torno de 55 mil exemplares.
A história do Independent pode parecer de um declínio constante, inexorável. Mas não é. Sua história tem tantos altos e baixos, tantos triunfos e desastres, tanto tempo passado à beira do precipício que muito pouco foi constante. Mas, a partir da necessidade de sobreviver veio a invenção que foi a característica do jornal ao longo de sua história.
O Independent, aliviado pela tradição e pelo pensamento conservador, sempre foi leve e sua reputação de inovador – que assinalou com a publicação do jornal como tabloide, em 2002, e o lançamento do jornal i oito anos depois – foi merecida.
Em 1986, o Independent nasceu parecendo tradicional e sério, mas isso era uma máscara do espírito aventureiro encarnado por Whittam Smith. Ele inspirou uma cultura jornalística na qual a sensatez recebida era desafiada e na qual ideias – por mais excêntricas que fossem – eram incentivadas. Era um ambiente estimulante e nós realmente nos sentíamos como se estivéssemos redesenhando a paisagem.
Havia uma sensação de esforço colaborador que pertencia ao objetivo. No início, isso era evidente na concessão de opções de compartilhamento para todos os membros da equipe (alguns até ganhavam dinheiro com isso). Nós éramos acionistas, em todos os sentidos da palavra, e todos os dias de manhã, o finado Elkan Allan, editor da seção de listas (outra inovação do Independent), ficaria andando de um lado para o outro, no trem que o trazia para a cidade, contando o número de jornais Independent que estavam sendo lidos. Mais tarde, ele repassaria os números num e-mail para toda a equipe. Esses números forneciam um quadro espantosamente preciso da força que o jornal emergente recebia em termos de qualidade.
Vítimas de uma guerra psicológica
O jornal humorístico Private Eye gostava de ridicularizar o jornal chamando-o “Indescritivelmente chato”, mas em seus primeiros anos ele teve uma mistura impressionantemente eclética de comentaristas e repórteres: nomes como James Fenton, Tony Bevins, Sarah Hogg, Peter Jenkins, Tom Sutcliffe, Andrew Marr, Isabel Hilton, Alexander Chancellor, Rupert Cornwell e Ken Jones. A editoria internacional tinha um editor para cada continente. Havia uma porção de talentos em cada departamento. Bill Bryson era subeditor, Sebastian Faulks era editor de literatura e Henry Winter, atualmente o decano dos jornalistas esportivos, era estagiário no departamento de esportes. Na realidade, o ambiente de trabalho nada tinha de aborrecido.
Nesta semana, durante os prêmios da imprensa britânica, os editores do Independent, do Independent on Sunday e do i receberam uma ovação de pé quando caminhavam para o palco para receber o prêmio do presidente. Havia um clima genuíno de afeto na sala, um reconhecimento pelas conquistas do jornal e uma homenagem ao trabalho incansável de seus jornalistas. Mas aqueles que aplaudiam com generosidade poderiam ser perdoados por se sentirem angustiados em relação ao seu próprio futuro, ao pensarem quando serão engolfados por uma maré incontrolável.
“Este é o único prêmio que ganhamos esta noite e é pelo fechamento de um jornal”, declarou Amol Rajan, o atual editor do jornal, ao aceitar o prêmio. Foi apenas parcialmente uma piada e seu comentário ecoou entre muitos de nós que passamos grande parte de nossas carreiras tentando manter o jornal vivo. Para o desfortunado Rajan e sua dedicada equipe, foi uma batalha para provar uma desigualdade cada vez maior e agora a história chegou a uma inevitável conclusão.
Ainda bem cedo, na manhã de 5 de maio de 1998, encontrei-me com meus dois principais assessores, Ian Birrell (subeditor) e Tristan Davies (editor assistente) numa cafeteria. Tristan e eu já havíamos trabalhado juntos no Indy anteriormente e estávamos impregnados pelas tradições do jornal. Sabíamos o que esperar. No domingo anterior, David Aaronovitch, um dos mais destacados colunistas do Independent, escrevera, em sua resenha de televisão semanal, algo como: “A trama era tão improvável quanto um editor de comportamento ser chamado para ser o editor de um jornal de qualidade. É uma coisa ridícula demais.” Saímos do elevador no 18º andar da praça One Canada e eu me encaminhei para a sala do editor. “Bom dia”, disse à mulher que viria a ser a minha secretária. “O que é que ele tem de bom?”, retorquiu ela. A principal sensação que tive na minha volta ao Independent foi a de que a anarquia tinha irrompido.
Ainda naquela manhã, dirigi-me à equipe, que tinha um comportamento semelhante ao das vítimas traumáticas de uma guerra psicológica. Acima de tudo, queriam saber se iria haver outra rodada de demissões – durante o mandato dos donos anteriores, do Mirror Group, tinham ocorrido cortes significativos – e se O’Reilly se comprometera a financiar os jornais.
Um almoço emblemático
O estado de espírito e o ânimo estavam extremamente baixos e era fácil compreender por quê. Os jornais haviam passado por alguns anos turbulentos e a circulação estava caindo de maneira alarmante. O Independent que assumimos nos foi legado por Andrew Marr, cujas experiências ousadas para criar um novo tipo de jornal não haviam passado pelo teste da venda em banca. Marra talvez estivesse alguns anos à frente de seu tempo. Ele criou as primeiras páginas em estilo de pôster (uma característica da transição bem-sucedida para o formato tabloide em 2003) e mudou a paginação para refletir os sofisticados jornais europeus (como a transformação do formato do Guardian para o Berliner, em 2005).
Foi sua a ideia de quebrar a hierarquia rígida dos jornais tradicionais – ao agrupar as matérias jornalísticas por assunto –, que mostrou ser um passo demasiado grande e confundiu leitores e jornalistas. Andrew Marshall, o lacônico editor do noticiário internacional, disse-me que essa abordagem chegou ao seu ponto mais baixo quando, após ter arquivado um texto com novas revelações sobre o zepelim, viu Marr avançando e perguntando se alguém teria outras matérias sobre zepelins.
Tratamos de reestruturar a paginação do jornal em linhas mais tradicionais, sempre respeitando suas origens. Juntamente com Tristan, uma fonte de energia criativa, e Ian – que desempenhava o inestimável papel de desafiar cada decisão perguntando ‘Por quê?’ – produzimos um jornal agradável, de formato grande, cheio de posições e de um jornalismo enérgico. Foi a enésima mudança de paginação na curta vida do Indy, mas aparentemente deu certo. Em 1999, ganhei o prêmio Edgar Wallace, do Clube de Imprensa de Londres, por ter “ressuscitado o destino do jornal” e também fui considerado o editor do ano nos prêmios concedidos pelo programa What the Papers Say [programa de rádio e televisão produzido pela BBC].
Entretanto, a confiança renovada que se percebia dentro e fora do jornal só foi possível graças a O’Reilly, que aumentou o orçamento para o setor editorial, apoiou as mudanças, investiu numa campanha de marketing e nos deu liberdade de operar sem interferências ou receitas.
Isso pode ser ilustrado pelo que ocorreu durante um almoço em nossos escritórios pouco antes da guerra do Iraque em 2003. Alastair Campbell era o convidado e estava presente um bom número de jornalistas importantes, assim como Chryss, esposa de Tony O’Reilly, Ivan Fallon, o principal executivo da empresa, e Terry Grote, diretor administrativo. No final de um lauto almoço, durante o qual a guerra fora o único tema das conversas, Campbell pediu que votássemos: quem era favor da guerra e quem se opunha? Todos os jornalistas, defendendo nossa enfática posição contra a guerra, nos opusemos. O’Reilly, sua esposa e sua equipe de executivos levantaram as mãos em apoio à guerra.
O Independent sempre foi um jornal virtual
Quando voltei a me encontrar com Alastair Campbell, ele disse que ficara muito impressionado com o fato de um proprietário não ter influência na linha política editorial. “Conte essa história a quem duvidar de sua independência”, disse ele. E foi assim que Tony O’Reilly – um conservador, ligeiramente eurocético, apoiador de George Bush e defensor da guerra do Iraque – apoiou financeiramente um jornal que se manifestava veementemente contra todas essas coisas. Além disso, ele resistiu a uma perda de vários milhões de libras por ano para garantir que o projeto prosperasse. No final, sua lealdade aos jornais do grupo Independent foi responsável, em grande parte, pela desintegração de seu império quando este foi atacado por Denis O’Brien, que não tinha interesse algum neste artigo de luxo. Nos recentes louvores ao Independent, é muito pouco o crédito que é concedido a Tony O’Reilly.
Em 2002, no desespero de encontrar uma ideia que estancasse a queda em circulação – que então já era endêmica a toda a indústria jornalística –, Ivan Fallon e eu discutimos a possibilidade de transformar o jornal num tabloide. Era uma estratégia de alto risco, pois não haveria como voltar atrás. Chamamos o formato de “compacto”, para o caso da associação com a palavra “tabloide” assustar todo mundo.
Depois de duas tentativas que deram errado – até chamei o famoso designer John Pawson para procurar uma mudança radical para o jornal (um pouco radical demais, infelizmente) – finalmente optamos por uma abordagem sóbria que não nos deixaria à mercê da acusação de sermos idiotas. E, como garantia suplementar, demos a nossas leitores uma opção, ao colocarmos na banca de vendas o jornal em formato grande e o tabloide, lado a lado. Não houve concorrência – no final de 2002 pudemos suspender a publicação da edição em formato grande.
Em seu novo formato, o jornal subiu 30% em circulação. A guerra do Iraque deu-nos uma causa pela qual nos definimos e começamos a usar o formato tabloide de maneira inovadora. Desenvolvemos uma margem de campanha para nosso jornalismo. Nossa oposição à situação no Iraque, liderada pelas incomparáveis reportagens de Robert Fisk e Patrick Cockburn, fez com que nos destacássemos num mercado em que as notícias se haviam tornado uma commodity. Ganhamos o prêmio de jornal do ano em 2003.
Tony Blair saiu do cargo em 2007, mas não antes de nos difamar em seu discurso de despedida da “besta selvagem”. Ao discorrer sobre os déficits da mídia, ele destacou o Independent para uma crítica específica. Nós éramos a “metáfora para o gênero do jornalismo moderno” que apresentava a notícia como um comentário e, consequentemente, deixava de proporcionar uma cobertura equilibrada. Ao vê-lo na televisão, eu não acreditava no que estava ouvindo. Foi um dos momentos em que me senti mais orgulhoso em minha carreira: era, evidentemente, injusto, mas também era uma maneira de tornar válido o que havíamos feito durante aqueles últimos anos. Tínhamos conseguido o que queríamos e havíamos acertado o alvo. O Independent sempre teve um impacto desproporcional ao seu alcance.
Eu havia passado dois anos como diretor administrativo, durante os quais ajudei na venda dos jornais à família Lebedev, e depois voltei por um breve período como editor em 2010. Eles mostraram ser proprietários nas melhores tradições do Independent e, independendo da frequência com que Evgeny Lebedev aparecia em suas páginas, eles merecem muito respeito pelo apoio que deram durante o período mais duro da crise. Mesmo agora, quando têm que aceitar o inevitável, estão migrando os principais jornalistas – Fisk, Cockburn e Grace Dent – para a edição digital. Se a receita disponível online vai ou não manter um jornalismo de qualidade é uma grande pergunta – e uma com a qual a maioria das organizações jornalísticas está lutando.
Houve alguma coisa como uma hipérbole nas reportagens sobre o falecimento do Independent. Um texto comparava os membros da equipe a veteranos da guerra do Vietnã;. não é bem assim. Ao invés de rastejarmos no delta do rio Mekong para evitar os vietcongue, nós estávamos num escritório com aquecimento central e nos divertíamos bastante. Houve algumas lágrimas de crocodilo. Rupert Murdoch lamentou a “falta de diversidade”. Isto, é bom lembrar, foi de um homem cuja política de preços na década de 90 poderia ter levado o Indy a fechar as portas.
Entretanto, o jornal será pranteado por muita gente de dentro da nossa indústria sitiada, assim como, com certeza, por sua comunidade de leitores profundamente fiéis, muitos dos quais tinham uma relação com o jornal de quase propriedade. De alguma forma, o Independent sempre foi um jornal virtual. Nunca teve caminhonetes próprias, nunca teve impressoras. Mas tinha uma alma que era real e um espírito que era tangível. O maior desafio do Independent é o de garantir que essas coisas sobrevivam à sua última transição.
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Simon Kelner foi editor-chefe do jornal The Independent