Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A absolutização do absurdo

Consultado pelo jornalista Vicente Nunes, autor da coluna “Correio Econômico” (Correio Braziliense, de 02/10/2015), o professor Simão Davi Silber, da Universidade de São Paulo (SP), diz que o Brasil conjuga, atualmente, quatro crises: política, econômica, social e moral. Para o educador, “tudo isso está acontecendo porque o governo perdeu a capacidade de governar”. A absolutização do absurdo é um grave erro argumentativo, por mais que seja legítima a reivindicação social de que o Estado deva ser regido pela justa ordem; caso contrário, “reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões”, como disse Santo Agostinho em certa ocasião. A justiça é o objetivo e, consequentemente, também a medida intrínseca de toda política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética.

Se, por um lado, a argumentação do professor da USP engrossa o coro daqueles que legitimamente anseiam por pessoas com integridade capaz de garantir um exercício adequado e indispensável da autoridade moral; por outro turno, o educador peca ao “fulanizar” o debate sobre os destinos do Brasil, elegendo a presidenta da República, Dilma Rousseff, como “bode expiatório”. O intelectual opta pela estratégia de pensamento mais desqualificada, a saber: argumentum ad personam. Assim explica o citado recurso o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), em Como vencer um debate sem precisar ter razão (1831): “Quando percebemos que o adversário é superior e que acabará por não nos dar razão, então nos tornamos pessoalmente ofensivos, insultuosos, grosseiros. […] O objeto é deixado completamente de lado e concentramos o ataque na pessoa do adversário, e a objeção se torna insolente, maldosa, ultrajante, grosseira. Essa regra é muito popular, pois todo mundo é capaz de aplicá-la e, por isto, é usada com frequência”.

O mesmo mal retórico contamina a reflexão do mencionado jornalista do Correio Braziliense quando, em tom apocalíptico e pessimista, oferece veredito cabal: “O Brasil mergulhou em uma paralisia assustadora. Quando se olha para a frente, em vez de melhora, o que se vê é um buraco sem fundo.” Vicente Nunes carrega nas tintas para defender sua tese malsinada de culpabilizar Dilma Rousseff pela crise que atravessamos, enquanto a responsabilidade social não é trazida à baila para propor soluções conjuntas que possam coletivamente qualificar a vida de todos os brasileiros:

“O ano de 2015 entrou na sua reta final, mas muitos já o estão riscando do calendário como se fosse uma praga a ser extirpada. Há quase três décadas não se via um período tão ruim para o país. A combinação de crise política com terremoto na economia fez com que o Brasil regredisse pelo menos três anos, trazendo de volta fantasmas que, pensava-se, jamais voltariam a nos atormentar. Mas Dilma Rousseff, com sua capacidade de fazer estragos, abriu-lhes as portas sem a menor cerimônia.”

O estilo da desculpability

O mal do jornalismo novidadeiro e sensacionalista se encontra na desvalorização do contexto e da historicidade. Como bem alertou o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) em Experiência e pobreza (1933), “abandonamos uma, depois da outra, todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do atual”. Uma consulta aos arquivos da imprensa brasileira nos fez chegar ao artigo “Regeneração”, escrito por Bastos Tigre (1882-1957), sendo o texto publicado no jornal Correio da Manhã de 09/11/1930. Já naquela oportunidade, em plena Era Vargas, o jornalista salientava, com méritos, o conjunto de medidas necessárias para que o país melhorasse coletivamente, em termos de desenvolvimento progressista: “É preciso curar o Brasil doente, instruir o Brasil ignorante, saldar as contas do Brasil endividado e, finalmente, enriquecer o Brasil paupérrimo.”

O jornalismo brasileiro já foi mais sensato na apresentação informativa e opinativa dos fatos, a considerar pelos destaques feitos neste artigo. Enquanto o tom argumentativo de Bastos Tigre busca o engajamento de pessoas em torno de uma causa comum (o êxito nacional), visando a dar um basta à inércia e à estagnação, Vicente Nunes prefere, por sua vez, adotar um discurso autoritário, transitando entre a provocação e a intimidação, desqualificando o nível de conhecimento do outro (no caso, o alvo de sua ofensiva, Dilma Rousseff).

Estabelece-se, em termos semióticos, um “contrato fiduciário”, em que o leitor tende a acompanhar as razões do jornalista. Indignado, Vicente Nunes investe a si mesmo no papel de herói do povo e reveste sua fala de um “parecer-verdade” que o público desavisado não tem como não sancionar como verdadeira. Considerando os tempos históricos de Bastos Tigre e Vicente Nunes, há o consenso de que a sociedade terá de assumir o desafio de viver com ainda mais parcimônia, menos ostentação e, sobretudo, menos desperdício.

Enquanto Bastos Tigre teve a virtude do accountability pessoal, Vicente Nunes, ao contrário, vem adotando como estilo a desculpability. Trata-se da habilidade de afastar de si a responsabilidade, culpando os outros, as circunstâncias, ou tudo aquilo que está à volta. É como vírus ou aplicativo pré-instalado que funciona turbinando o inábil instinto de defesa. Nascemos com ele e ele está conosco presente na humanidade desde o início da civilização, o que pode ser percebido em Gênesis, capítulo 3, versículos 11 e 12: “Perguntou-lhe Deus: Quem te fez saber que estavas nu? Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?/Então, disse o homem: A mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi.”

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários