Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A comunicação pública também está doente

Foto: Carolina Antunes/PR

A comunicação pública está doente no Brasil. O vírus que a ataca tem o DNA do autoritarismo, do personalismo e da desinformação. Sofrem do mal a comunicação pública feita na esfera do Estado e a produzida no campo da comunicação de massa, do jornalismo em particular. Sintomas são percebidos de diversas formas na sociedade, pela omissão e distorção sistemática, redução da transparência e accountability, ausência da controvérsia argumentativa etc. As sequelas são múltiplas e se tornam evidentes: como a comunicação pública, a democracia está se deteriorando, perdendo qualidade. Se o quadro não for revertido rapidamente, as consequências podem ser permanentes, de difícil recuperação.

A comunicação pública gozou de boa saúde até poucos anos. Um ciclo promissor e muito fértil dessa ideia emergiu em meados dos anos de 1990, coincidindo com a fase mais madura do processo de redemocratização do país. A partir dali, a despeito do matiz político dos sucessivos governos e ambiente político, formou-se uma produtiva simbiose entre o campo científico e o campo profissional em diversos níveis, com trocas de experiências e reflexões conjuntas, em um esforço colaborativo para refinar conceitos e teorias, dando origem a uma robusta produção bibliográfica e consistentes experiências no âmbito do Estado, em todos os poderes e níveis. Em comum, uma comunicação alicerçada no conceito de interesse público e que, sim, sempre é também política e institucional, mas balizada pela atenção e esclarecimentos às dinâmicas dos problemas coletivos e de sua consolidação em políticas públicas. Neste movimento, requisitos democráticos como transparência, accountability, participação e deliberação entraram no léxico da política e foram incorporadas à cultura das organizações que efetivamente produzem a comunicação pública. A marca “chapa branca”, tatuada na comunicação com gênese no regime militar, parecia estar definitivamente apagada.

Destacam-se neste contexto experiências marcantes que se tornaram referências nacionais e internacionais da pesquisa em comunicação pública, como as da prefeitura de Porto Alegre nos primeiros anos do Orçamento participativo; as ocorridas no Senado e na Câmara Federal, que deixaram o personalismo do plenário em segundo plano, concentrando-se na agenda dos temas públicos, e as de diversas assembleias estaduais, com suas atuantes redes de comunicação. Esses processos certamente contaram com apoio de governantes e políticos sensíveis ao aprimoramento da democracia e da comunicação, mas foram concebidos e construídos de fato pelos profissionais da área, confiantes na potencialidade normativa da comunicação pública, na força da autonomia e profissionalização das equipes, na estruturação de redes que passaram a fornecer material de melhor qualidade aos cidadãos e ao próprio jornalismo tradicional.

Esse movimento rumo a uma comunicação mais ampla, mais autônoma e mais diversa foi percebido claramente durante muitos anos nas pesquisas submetidas aos congressos anuais da Compolítica, no GT que com distintos nomes sempre abrigou a temática. Mas em algum ponto entre 2014 e 2018 isso parece ter mudado. No congresso de 2019, que retratou pesquisas empíricas dos anos imediatamente anteriores, percebeu-se que a tendência tomou outro rumo, com relatos de deterioração da comunicação pública, em geral pela interferência direta e arbitrária de mandatários públicos na comunicação em diversos ambientes do Estado. De lá para cá, o alinhamento da comunicação à cabeça do chefe tornou-se forçosamente dominante, com viés de redução da autonomia das áreas, interferência de cunho político-eleitoral, sobreposição do interesse privado sobre o coletivo. Uma percepção restrita de democracia e de comunicação, vinda dos que desde então governam, modificou todo o ambiente. No 9. Congresso da Compolítica, que começa na próxima semana, praticamente todos os trabalhos do GT Comunicação Pública e Institucional trazem de alguma forma relatos nesse sentido (ver programação das três sessões do GT 4 em https://doity.com.br/compolitica2021/calendario).

As evidências desta pandemia comunicacional são fáceis de encontrar, para onde quer que se olhe, sobretudo na esfera de responsabilidade do governo federal. Silêncio e distorção sistemática na comunicação sobre a Covid-19, censura prévia na comunicação de órgãos públicos, sucateamento das redes de comunicação existentes, ameaça de privatização da EBC, abafamento das iniciativas dos profissionais de comunicação. Das falas do presidente contra a comunicação pública, jornalistas e imprensa, ou das ações do ex-secretário da Secom, nem é preciso falar, ultrapúblicas que o são.

O outro ente acometido do mal que assola a comunicação pública é a imprensa hegemônica, de referência, de massa, conforme o jargão que se queira utilizar. Envoltas em uma crise de múltiplas faces — mercadológica, técnica, identitária e de legitimidade — as empresas privadas que referenciam o jornalismo mainstream no Brasil foram uníssonas e corresponsáveis pela mudança abrupta da institucionalidade em 2016, quer pelo apoio ao golpe quer pela função que desempenharam na Lava-jato. Mas agora, elas parecem dividir-se em dois grupos distintos: um, assustado com a pandemia antidemocrática (que as coloca em risco como organização), e outro grupo cego no apoio à empreitada. A polarização política no país também é, agora, do jornalismo, embora com matizes diferentes da polarização política, ainda.
Em termos de comunicação pública, as correlações entre a natureza da comunicação do Estado e da imprensa são imensas. Historicamente, a imprensa liberal surge, ganha legitimidade social e se consolida como negócio privado, relacionando-se, imbricada com o Estado, quer como foco de conteúdos, quer como um dos principais financiadores. A gênese e o desenvolvimento da nova noção de comunicação pública nas últimas décadas também oxigenaram e foram salutares para o jornalismo brasileiro. Além de um ambiente político tolerante à diferença, o ciclo foi marcado por maior transparência das fontes e disponibilidade de informação, impactando positivamente pautas e matérias, o que levou os veículos a reproduzir conteúdos melhores vindos do Estado ou ter que se aprimorar para superar a esfera do visível.

Mas a mão mudou com a pandemia antidemocrática. Os membros do primeiro grupo, que, aliás, se constituíram como grupo somente a partir das ameaças comuns que receberam, estão às voltas com uma comunicação de Estado omissa, distorcida, questionável, persuasiva. Isso passou a exigir mais investimento na apuração e reportagem, mais energia para contradizê-la. Isso está fazendo bem às empresas e aos cidadãos que querem jornalismo de mais qualidade. O caso do pool de empresas que assumiu o vácuo da omissão estatal na consolidação e comunicação diária dos dados nacionais sobre a Covid-19 é um bom exemplo. De certa forma, diante das novas ameaças, o jornalismo voltado ao interesse público parece estar construindo um caminho para ressurgir.

O outro grupo da polarização do jornalismo é constituído por uma miríade de algumas das empresas de alcance nacional, mas a maior parte tem público estadual e municipal. Todos estão fechados em reproduzir o discurso ultraconservador e negacionista do projeto vigente, não interessa qual. É preciso recorrer à economia política da comunicação para lembrar que essas tendem a não ser empresas capitalistas stricto sensu, pois políticos e igrejas são seus principais controladores.

Enfim, a doença está aí e o tratamento é paliativo, político. E há indicadores robustos de ampliação da imunidade. A pesquisa sobre comunicação pública continua forte e crítica, quer pela ação dos pesquisadores e de suas associações, quer pela resistência geral nas universidades, sobretudo as públicas, nesse embate. A cultura democrática dentro das áreas de comunicação das organizações do Estado mostra clara resiliência, mesmo onde os de cima ameaçam e condenam ao ostracismo os profissionais. O jornalismo de caráter cívico aparece cada vez mais nos veículos tradicionais, mas se fortalece mesmo nas novas experiências periféricas da sociedade civil, os novos jornalismos, especialmente os voltados à defesa de direitos e às disputas pelas narrativas nas redes sociais. Os projetos contra desinformação errática ou sistemática ganham corpo e apoio social. Espaços como este Observatório de Imprensa e o Observatório de Comunicação Pública (Obcomp) se tornam essenciais ao esclarecimento e debate em perspectiva.

Mas a prevenção definitiva da doença, a vacina democrática, parece estar na escolha dos representantes. Evitar novas ondas antidemocráticas na área da comunicação requer considerar critério eleitoral de primeira ordem os valores que os candidatos a representantes conferem à comunicação pública — e como os praticaram objetivamente no passado. A cura é normativa, tem sentido reivindicatório, de aspiração permanente: defender mais e melhor comunicação pública significa defender mais e melhor democracia. Sempre.

***

Carlos Locatelli é professor do programa de Pós-graduação em Jornalismo/UFSC e coordenador do GT Comunicação Pública e Institucional – Compolítica.