A CPI da Covid se tornou um marco histórico no Brasil, não apenas pelo cerco ao governo Bolsonaro, mas principalmente porque se criou uma inédita janela de diversificação informativa sobre as causas e consequências da pandemia de coronavírus no país. A conjuntura política, a avalanche de dados recebidos e a participação popular pela internet criaram um contexto que pode acabar exigindo soluções também fora dos padrões usuais no Congresso Nacional.
A Comissão Parlamentar de Inquérito recolheu até agora cerca de um terabyte de documentos relacionados à caótica política do governo Bolsonaro em relação à pandemia. Trata-se de uma massa impressionante de dados que obrigará os 11 senadores a examinar cerca de 6,5 milhões de páginas em formato PDF. Isto sem falar na necessidade de checar a veracidade de informações contidas nos depoimentos prestados por 15 testemunhas, entre os dias 4 de maio e 15 de junho.
A sucessão de depoimentos na Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado Federal gerou um debate nacional onde, pela primeira vez desde a ascensão da extrema direita ao poder, políticos de oposição ousaram recorrer de forma institucional à ajuda de usuários da internet, o refúgio comunicacional de milhões de brasileiros marginalizados na agenda informativa nacional.
O senador Renan Calheiros (MDB-Alagoas) e outros senadores participantes da CPI, têm usado as redes sociais para garimpar perguntas e dúvidas de usuários e submetê-las aos depoentes. Os membros da comissão recebem, durante cada sessão, em média um total de 350 a 400 mensagens de usuários da internet com sugestões, críticas e correções, segundo o site SenadoNotícias.
Quase todos os 11 senadores acompanham os depoimentos com um olho no que dizem as testemunhas e o outro na tela de um celular, tablet ou computador conectado à internet. Os parlamentares são atraídos pela intensidade dos debates entre usuários da internet. O volume de postagens nas redes sociais sobre a CPI já bateu o recorde diário de 1,4 milhão de mensagens, 71,4% das quais de apoio, segundo a colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo.
Crowdsourcing e o Fact Checking
O inédito volume de informações já disponíveis e as que ainda virão até o final do mandato da CPI, criam a necessidade de soluções não convencionais para a análise de todo este material. Duas delas surgem como as mais adequadas e ambas se baseiam na participação de pessoas e instituições não governamentais: a investigação coletiva, também conhecida pelo jargão inglês crowdsourcing, e a checagem de fatos, outra modalidade de verificação de credibilidade de informações, mundialmente conhecida como fact checking.
Em 2009, cerca de 20 mil ingleses se envolveram na avaliação de 700 mil documentos com denúncias sobre malversação de dinheiro público por membros do Parlamento britânico, numa experiência promovida pelo jornal The Guardian. Na época, os parlamentares britânicos afirmaram que levariam três anos para examinar todo o material. Os voluntários verificaram 56% dos documentos e a soma do tempo que eles dedicaram a esta tarefa foi de aproximadamente 85 horas. Agora, aqui na CPI, o desafio é muito maior, porque o volume de material é quase 100 vezes superior.
A surpreendente participação popular através da internet levou o relator Renan Calheiros (MDB-AL) e o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede – AP) a pensarem num pedido de ajuda de organizações de checagem de fatos para verificar a confiabilidade de dados apresentados pelos depoentes e que formam (até o dia 15/6) quase 140 horas de gravações. Várias organizações como Fato ou Fake, Comprova e Aos Fatos já fazem uma checagem, mas até o fechamento deste artigo não havia informações sobre um possível acordo coletivo com a CPI.
Oportunidade rara e inadiável
Estamos diante de um típico caso em que o volume de dados e informações supera a capacidade analítica das reduzidas equipes de assessoria da dos sete parlamentares oposicionistas e independentes, deixando aberta a possibilidade de serem ignorados elementos cruciais para uma mudança na estratégia nacional de combate à Covid.
A checagem de fatos, no caso específico da CPI, é o instrumento adequado para flagrar inverdades, meias verdades e omissões nos depoimentos e debates na comissão. Temos assistido representantes do governo e da oposição citarem documentos, pesquisas e especialistas em temas reconhecidamente complexos, sem que seja possível verificar tanto a sua confiabilidade como o contexto em que foram desenvolvidos ou publicados.
O avanço dos trabalhos da CPI começa a indicar a necessidade de ampliar a função investigativa para envolver profissionais e organizações não governamentais em áreas como processamento colaborativo de informações, gestão de bancos de dados e jornalismo especializado em checagem de fatos.
A Comissão Parlamentar de Inquérito tornou-se o epicentro da política nacional ao expor na TV e nas redes sociais as entranhas da administração Bolsonaro pela primeira vez desde que o capitão aposentado assumiu a presidência da República. Esta mudança só foi possível porque os senadores oposicionistas e independentes na comissão conseguiram transformar a informação no foco central dos debates.
Estamos diante de uma oportunidade rara e inadiável de lograr uma inédita participação cidadã e autônoma numa investigação promovida pelo poder legislativo.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.