Esqueçam a Netflix, a melhor minissérie se chama Brasil. Não há streaming com mais suspense, intrigas, disse-não-disse, traições, mentiras e ofensas. Como nos grandes novelões, os personagens mudam o texto de acordo com a opinião do público, desta vez no palanque sem lei das redes sociais. Um dia vamos ter mais Ministérios; no outro, ouvimos mal. Um dia rasga-se elogios para os ministros da Pesca (?), Esportes e até para o galã de Malhação na Cultura; no outro, os três serão varridos para pagar a dívida com o Centrão. O governo é assim, uma emoção, o ministro dorme com elogios e acorda fritado em azeite de caldeirão de bruxa.
Joe Biden ri quando perguntamos se vai responder ao nosso presidente, o Brasil virou motivo de chacota no mundo. O chanceler brasileiro discute com o presidente da França sobre queimadas na Amazonia, lamenta a vitória de Alberto Fernandes na Argentina, diz que a China disseminou o “comunavirus”, deixa a ONU falando sozinha, monta grupos de ataque contra a invasão da Venezuela. Até agora, nenhuma mensagem do Brasil em apoio ao presidente Win Myint e Aung Saan Suu Kyi, Nobel da Paz, presos em Mianmar por um golpe militar esta semana. Segundo o ex-chanceler Rubens Ricupero, vamos levar duas gerações para recuperar o prestígio perdido com Ernesto Araújo e sua diplomacia.
As contas públicas só vão voltar ao azul em 2027. Até lá aumentarão as 700 teorias conspiratórias expostas nos discursos, vídeos, entrevistas, tweets de Jair Bolsonaro, de Araújo, de Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, e de Eduardo Bolsonaro.
Dinheiro parece não faltar. Em plena pandemia, as emendas do Turismo crescem 372% em relação a janeiro de 2020. Para blindar as CPIs que vão decidir o destino de Flávio nas rachadinhas, Bolsonaro prometeu cerca de R$ 20 bilhões em emendas extraordinárias para segurar o apoio a Artur Lira na Câmara–que entre outras coisas vai impedir seu impeachment.
A minissérie Brasil mantém a expectativa sobre a venda do Congresso quando o Centrão retomará a Câmara seis anos depois da vitória de Eduardo Cunha, que liderou a rebelião contra Dilma em 2014 e hoje, cassado, está em prisão domiciliar.
O país produz só 5% dos insumos farmacêuticos que consome e o atraso em vacinação vai custar R$ 150 bilhões este ano. Mas não faltarão 2,5 milhões de latas de leite condensado e R$ 2,2 milhões em chicletes, compras prioritárias do governo.
O ministro da Saúde responde pela morte por asfixia em Manaus por falta de oxigênio hospitalar e a recomendação do “tratamento precoce” com coquetel de cloroquina e azitromicina. Eduardo Pazuelo, especialista em logística, foi mandado para a guilhotina mas quem chamava de “maricas” os brasileiros que se protegiam do vírus era o presidente. Fez escola. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. O desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Carlos Eduardo Contar, assumiu o cargo pedindo “o fim da esquizofrenia e palhaçada midiática fúnebre”, quem se cuida é “irresponsável, covarde e picareta”.
Outro denunciado pela Procuradoria Geral da República, agora por homofobia, o Ministro da Educação diz que responde ao inquérito no STF “por defender a Bíblia”. Para Milton Ribeiro a homossexualidade não é “normal” e ocorre em “famílias desajustadas”.
A dívida pública pode encostar em R$ 6 trilhões este ano, o país começa 2021 com quase 27 milhões de miseráveis depois do fim do auxílio emergencial mas o armamento está em dia, mais de 1 milhão do arsenal nas mãos de civis.
Relatórios do governo deixam a população de cabelo em pé pela proliferação das medidas para aumentar a capacidade de vigilância e controle. O que virá por aí? O uso de dados é um risco, ninguém acredita que seja só para aumentar a eficiência dos serviços sobre o cidadão.
Tudo pela censura: o presidente da APEX (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) retirou um artigo da agente literária Lucia Riff que continha “seis autoras para não perder de vista”. O contra-almirante Sergio Ricardo Segóvia Barbosa quis agradar Bolsonaro para não perder o cargo como os antecessores, Alex Carreiro e o embaixador Mario Vilalva. Entre os livros que foram para a lixeira, A Máquina do Ódio de Patrícia Campos Melo, a quem Eduardo Bolsonaro foi condenado a pagar indenização de R$ 30 mil por dizer, numa live do canal Terça Livre do You Tube, que Patrícia seduziu a fonte para obter informações. A jornalista da Folha denunciou o uso de fake news na eleição presidencial de 2018. Bolsonaro disse que a jornalista “queria dar o furo”. Só entre os leitores da Folha, 80% apóiam seu impeachment segundo Datafolha.
O clã presidencial lidera os ataques à imprensa. Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão, ministros e assessores ligados à Secretaria de Comunicação foram responsáveis por 580 ofensas a profissionais de imprensa. Eduardo Bolsonaro, no topo do ranking, 208 registros.
Temos assunto, não temos país.
Na Folha (31/1), Ricardo Araújo Pereira dá receitas com leite condensado, a primeira começa assim : ”Duas latas de leite condensado; um rabo de jornalista …”
José Eduardo Agualusa (Globo,30/1) reage aos palavrões à imprensa, “Bolsonaro não é um presidente, é um atentado ao pudor”.
Eugenio Bucci no artigo Fora Bolsonaro no Estadão (28/1) associa xingamentos como “globolixo” a Lügenpresse (imprensa mentirosa) dos nazistas que só acreditavam na palavra do partido. “Um presidente liderando campanhas anti- imprensa é um atentado ambulante à Constituição. Os jornalistas brasileiros não se afastariam do seu dever de objetividade e independência se exigissem, em bloco, a destituição de Jair Bolsonaro”.
Ruy Castro (Folha, 27/1) faz o contrário. Relata os xingamentos dirigidos a Bolsonaro desde a sua posse e o Golden shower, “cretino, grosseiro, despreparado, irresponsável, omisso, analfabeto, homófobo, mentiroso , escatológico, cínico, arrogante, desiquilibrado, demente, incendiário, torturador, golpista, racista, fascista, nazista, xenófobo, miliciano, criminoso, psicopata, genocida”. Dois dias depois completou as Novas Definições para Bolsonaro, de A a Z, começando por “abjeto” e chegando a “zoilo”, passando por “besta-fera, daninho, ególatra, ignóbil, lesivo, narcisista, obsceno, paranóico, rastaquera”.
A empolgante minissérie Brasil terá trilha sonora no Carnaval, dia 13 de fevereiro, no samba dos blocos Meu Bem Volto Já e Escravos de Mauá, homenageando virtualmente a Fiocruz: “Eu leio Marx, encontrei Jesus/ Mas quem vacina é Oswaldo Cruz”.
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Norma Couri é jornalista.