Na terça-feira (26/5), neste mesmo Observatório da Imprensa, um artigo que escrevi em parceria com Maria Bispo alertava sobre as tentativas por parte da grande mídia de apresentar Lula e Bolsonaro como duas faces da mesma moeda.
Segundo boa parte dos órgãos de imprensa, tanto o petista quanto o atual presidente seriam adeptos de ideais autoritários, incentivam a polarização política e negam os efeitos negativos da pandemia do novo coronavírus.
Coincidentemente, na mesma data em que nosso texto foi publicado, o jornal O Estado de S.Paulo lançou um editorial – intitulado “Nascidos um para o outro” – que intensificou a campanha midiática contra o que consideram como os “extremos”: Lula, à esquerda, e Bolsonaro, à direita.
No início do editorial, o periódico paulista aponta que Lula e Bolsonaro seriam “siameses que enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva: Estado e o povo como meros veículos de suas aspirações totalitárias”, o que deixaria Maquiavel, acostumado às maiores artimanhas da esfera política, bastante envergonhado.
No entanto, basta uma breve análise dos fatos para refutarmos a desonestidade intelectual e a linha jornalística tendenciosa de O Estado de S.Paulo.
Diferentemente de Bolsonaro, Lula, enquanto esteve à frente do executivo federal, não fez ataques aos outros poderes republicanos, nem incentivou manifestações antidemocráticas, também não mandou algum profissional de imprensa calar a boca ou elogiou a ditadura militar (pelo contrário, o ex-presidente foi uma das vítimas do regime autoritário).
O editorial também retoma a falaciosa armadilha discursiva de tentar equiparar os posicionamentos de Lula e Bolsonaro no tocante às consequências da covid-19 no Brasil: “Ambos, Bolsonaro e Lula, só se importam com o sofrimento e a ansiedade da população na exata medida de seus objetivos eleitorais. O petista, por exemplo, declarou recentemente que ‘ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus para que as pessoas percebam que apenas o Estado é capaz de dar a solução, somente o Estado pode resolver isso’”.
Conforme é do conhecimento de todos, Lula se retratou sobre a declaração mal colocada. “Usei uma frase infeliz, que não cabia, para tentar explicar que é no auge da crise que a gente entende a importância do SUS e do Estado”, explicou o petista.
Portanto, em mais uma oportunidade, não faz sentido comparar as posturas de Lula e Bolsonaro frente à pandemia do coronavírus, pois o atual presidente continua indiferente ao grande número de vítimas e segue em sua campanha pela reabertura total da economia, o que tende a aumentar ainda mais o número de óbitos.
Além do mais, Lula não está no poder há mais de uma década; suas declarações, apesar do grande efeito simbólico, não modificam as ações do Estado.
Não foi uma suposta indiferença às vítimas da covid-19 que fez os articulistas da grande mídia se voltarem contra a declaração de Lula, mas a denúncia de que o modelo neoliberal é ineficiente para lidar com graves crises sanitárias. Nesse sentido, o ex-presidente cometeu uma “blasfêmia”, pois criticou o “Deus mercado”, a quem a mídia deve completa devoção.
Para O Estado de S.Paulo, Lula e Bolsonaro trabalham para “cindir o país” e concebem como “inimigos” todos os indivíduos que não aceitam seus “projetos de Estado autoritário”.
Mais um posicionamento completamente descabido do periódico. Historicamente, Lula é considerado um “conciliador” dentro da esquerda, posição que, diga-se de passagem, foi motivo de várias críticas. Também é importante frisar que, independentemente da atuação do ex-presidente, a divisão da sociedade brasileira existe desde que Cabral chegou a essas terras.
Em sua conclusão, o editorial do jornal O Estado de S.Paulo enfatiza que “o bolsonarismo é um monstrengo antidemocrático que só ganhou vida e ribalta por obra e graça do lulopetismo. A uni-los, a sede de poder absoluto”.
Aqui temos a máxima “filho feio não tem pai”. Trata-se de uma clara intenção de negar a paternidade sobre o mais forte movimento da extrema-direita atual. Como diz o título de um recente artigo que escrevi: “a mídia ajudou a criar Bolsonaro e o bolsonarismo, mas diz não ter nada a ver com isso”.
Em sua seletiva campanha de demonização da esfera política para favorecer aos interesses do mercado, a metralhadora ideológica da imprensa hegemônica mirou o PT, deu um giro de 360 graus, e acabou atingindo os próprios partidos da direita tradicional que apoia. Nesse giro verborrágico, surgiu o bolsonarismo.
Sendo assim, para as classes dominantes e para a grande mídia, tornou-se imprescindível eliminar do jogo político nacional tanto Lula (“inimigo ideológico”) quanto Bolsonaro (o efeito colateral do antipetismo) para que a direita tradicional volte ao poder. Este é o real objetivo por trás de linhas editoriais como a adotada pelo Estado de S.Paulo.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Coordena a área de Geografia da Vicenza Edições Acadêmicas. Autor do livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático, lançado pela editora CRV.