Um dia depois da divulgação do vídeo da reunião do 22 de abril do presidente Jair Bolsonaro com seus ministros, eu quis saber qual tinha sido a reação dos bolsonarianos. Levei um susto: tinham ficado eufóricos e, nas mensagens sociais circulando pela Internet, afirmavam: “Com esse vídeo, Bolsonaro está reeleito!”. Até entre os evangélicos, a síntese era esta “melhor palavrão do que ladrão!”
A deputada Janaína Paschoal, fazendo-se de ingênua, saiu-se mais ou menos com esta frase: “Será que estou vendo vídeo errado?” O próprio The Intercept criou um placar 7 a 1 de Bolsonaro sobre Moro! Haveria duas versões do vídeo autorizado pelo ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal?
Eu teria visto a versão hard e os outros uma soft? Não, só existe mesmo um vídeo, o mostrado nas televisões e transcrito, em suas partes principais, pelo jornais. Será que eu pirei, não entendi, ouvi mal?
Numa hora dessas, o melhor é ir à fonte. Ouvir alguém representante do maior grupo de apoiadores do presidente Bolsonaro, os evangélicos. Ora, neste caso, um dos mais indicados seria o chamado pastor evangélico Silas Malafaia, cujo canal no Youtube tem mais de um milhão de seguidores.
Cheguei na hora certa. Malafaia tinha acabado de entrar no Youtube e estava eufórico, batia mesmo palmas de satisfação e alegria. Depois de ver o tão falado vídeo, Malafaia berrava “Obrigado Moro, obrigado ministro Celso de Mello, que se transformou no maior marqueteiro do presidente Bolsonaro!”.
Foram quase três minutos de júbilo do líder evangélico. Daí, não entendi mais nada. Meu pai que era presbiteriano, sério e severo, me teria repreendido e me passado um sabão se, para explicar alguma coisa, por falta de vocabulário, eu utilizasse um palavrão ou uma maneira chula ou vulgar de falar.
Por mais que force a memória, não me lembro de nenhum de meus colegas da Escola Dominical ou da União da Mocidade Presbiteriana usar o que se chamava de uma “palavra feia” ou palavra de baixo calão, num jogo esportivo ou num momento de raiva, ali perto da igreja ou no ginásio onde éramos colegas.
Por isso, como o tempo mudou e os hábitos junto, quero me dirigir ao “pastor” Malafaia para lhe fazer algumas perguntas. A primeira delas é relacionada com a Bíblia. Quem sabe me tornei careta e estou por fora do que se passa hoje no mundo evangélico.
A Bíblia de meu pai, e que acabou ficando comigo, é uma tradução de João Ferreira de Almeida, editada no começo do século passado. A edição da primeira Bíblia na língua portuguesa é toda uma história. O João nasceu em 1628, numa aldeia portuguesa e foi criado pelo tio padre. Sem grandes distrações, aprendia latim e grego com o tio, e aos 14 anos já dominava esses idiomas.
Portugal vivia um período de crise econômica com a ascensão da Holanda, que chegaria a invadir o Brasil, e da Inglaterra. Mesmo em Portugal chegavam os ecos do protestantismo, tanto que João Ferreira de Almeida, ainda adolescente, se tornou protestante, foi para a Holanda e se tornou missionário na Indonésia, colônia holandesa, onde passou sua vida a traduzir a Bíblia para o português.
Dessa época para cá, a tradução Almeida passou por diversas revisões para se adaptar ao português do Brasil. E surgiram outras traduções.
Por isso pergunto, pastor Malafaia, se nessas revisões se decidiu, para se popularizar a Bíblia e torná-la mais acessível ao povo, adotar a atual linguagem vulgar e chula, corrente em certas camadas da população. Lembro que, nas descrições bíblicas de atos sexuais gerando filhos, se costuma dizer “Fulano conheceu a… ela “. Ou agora também se adotou “Fulano fodeu com ela e ela concebeu”? E, por redundância, “Que os inimigos de Deus se fodam!”?
Se já existem versículos assim na Bíblia, entendo sua conivência com a enxurrada de palavrões pronunciada pelo presidente Bolsonaro, e imagino que alguns pastores talvez usem linguagem chula e vulgar ao atacarem o diabo, os comunistas e os homossexuais no púlpito das igrejas.
Mas se a Bíblia ainda não se vulgarizou, imagino qual seria a reação do severo reverendo Boanerges Ribeiro, antigo presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil e da Universidade Mackenzie, em São Paulo, à linguagem vulgar do presidente. Mesmo tendo sido também cristão de direita, ter apoiado o Golpe de 1964 e ter criado o equivalente aos inquéritos policiais militares, IPMs, dentro dos seminários presbiterianos da época.
Daí minha primeira surpresa — sua conivência total à essa inovação de linguagem mesmo num encontro ministerial. Espero que o chanceler Ernesto Araújo não vá mandar “tomar no c” um colega seu de um país europeu que critique o desmatamento da Amazônia.
Bom, dizem que educação não se aprende na rua. E isso me lembra que, na época do Almeida tradutor da Bíblia, devia ser rei um Afonso VI, cuja diversão era ficar fazendo batalhas a pedradas à frente do Palácio com os arruaceiros da época, me lembrando os carreteiros à frente do Alvorada. Afonso VI, logo se percebeu, era maluco e acabou tendo de ceder o reinado. Qualquer semelhança é ou será mera coincidência.
Um pastor tolerante com palavrões me lembra um comentário no Facebook de uma evangélica: “Prefiro quem diz palavrão do que quem é ladrão”. Ora, não acho ser uma questão de oito ou oitenta. Eu não tenho preferência nem pelo palavrão nem pelo ladrão.
Agora, vamos às coisas mais séria, pastor. Nesse mesmo encontro ministerial do 22 de abril, foram cometidos crimes verbais muito graves. E como o pastor aplaudiu com euforia, gostaria de saber se, passado o momento da alegria, continua aprovando tudo quanto ali foi dito.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, será provavelmente processado e perderá seu cargo de ministro, por ter feito declarações grosseiras e inaceitáveis aos membros do Supremo Tribunal Federal. Não preciso acentuar o caráter ofensivo de tais declarações porque o próprio ministro Celso de Mello se considerou agredido, assim como seus pares.
Pergunto pastor Malafaia, se ainda aprova, como líder cristão, as declarações agressivas do ministro da Educação. Isso porque tais declarações têm um caráter anti-institucional e anti-democrático e sua cumplicidade, que pode influir sobre seu milhão de seguidores e outros milhões de evangélicos, talvez nem Deus lhe perdoe, é um pecado grave.
Mais grave, porém, pastor, é sua conivência com o apelo do presidente aos seus ministros, no sentido de ser preciso se armar o povo. O pastor, matreiro como é, deve ter percebido qual o objetivo deste apelo. Ninguém arma o povo para festejar São João em junho. Armar o povo só pode ter por objetivo criar uma base civil, um apoio armado no caso do Golpe pretendido provocar uma guerra civil.
O pastor não é surdo para se eximir. Ouviu muito bem o presidente falar em armar o povo. Se não condena esse apelo às armas, também não condenará o uso dessas armas por seus seguidores contra irmãos brasileiros, em contradição com os ensinos pacíficos dos Evangelhos? Veja bem, pastor, aqui não se trata de palavrão, nem de ofender os ministros do STF, mas de matar. Matar para defender um Golpe. Foi bem isso que entendi ao ver seu Youtube?
Porém, não é só isso. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fez, nesse mesmo encontro, uma proposta indecorosa, desonesta, digna de bandido — vamos aproveitar a crise do coronavírus para aprovar as leis que favorecerão a pecuária? Em outras palavras, o ministro quer favorecer a doação de terras da União para invasores de terras da Amazônia, a fim de transformar a região num imenso pasto de gado.
O pastor também aprova isso, mesmo porque forçando os indígenas a sair de suas reservas ou mesmo de suas tribos ficará mais fácil convertê-los para Cristo? Ora, por em prática essas medidas exigirá violência, assassinatos e a destruição de nossas florestas. O pastor também concorda com Ricardo Salles, mesmo se a comunidade internacional está revoltada com esse crime anunciado? Isso seria cristão? Isso seria um ato evangélico?
Muitos de nós brasileiros temos ancestrais autênticos brasileiros, cuja memória não nos permitirá aceitar esses crimes e assassinatos. Me lembro aqui de minha bisavó índia guarani, pegada a laço aos seis anos numa floresta paulista na metade do século XIX. Conceição foi assim cristianizada. É isso pastor que imagina ser feito e aprova na Amazônia? Vamos acabar com o povo indígena, limpar o terreno, plantar capim e milho para o gado e erguer templos evangélicos, em cima dos cemitérios dos nossos irmãos indígenas?
É isso pastor?
Se concorda também com a prisão dos governadores, proposta pela ministra Damares, por terem implantado a quarentena e protegido sua população, evitando assim a contaminação e morte de muito mais pessoas, se está eufórico com isso, como vi no Youtube, me desculpe, mas não posso nem lhe considerar cristão, mas um impostor e cúmplice de todos os erros e abusos já cometidos e dos crimes que virão. E o pior de tudo isso, cometidos em nome da Bíblia, do Evangelho e de Cristo.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Organizador do Encontro com a Liberdade, em 1967, em São Paulo, contra a Ditadura Militar. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.