Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Brasil deles, o nosso e o inventário de cicatrizes

(Foto: Clauber Cleber Caetano/PR)

O governo acumula cadáveres e desatinos. Nós, cicatrizes.

49 pedidos de impeachment não são suficientes. Nós, pedimos mais um.

Ricardo Salles queria preservar apenas 390 mil hectares da floresta nativa. Nós, com desmate de 34% em um ano, exigimos manter os 90% preservados.

Salles ao Financial Times: quer leiloar para o mercado 132 parques nacionais. Nós, reagimos, equivalem a 15% do território brasileiro para o governo cuidar.

Bolsonaro já se referiu à Noruega como “aquela que mata baleia no Polo Norte” e acusou Leonardo di Caprio de “tacar fogo na floresta”. Nós, vimos os R$ 3,2 bilhões noruegueses doados ao Fundo Amazônico irem embora, e só ficou a vergonha.

Guedes disse ao Aspen Institute que os Estados Unidos também mataram índios. Mourão afirma que 750 mil indígenas têm domínio do território e estão cuidados. Nós, sabemos que a pandemia pode dizimar a população indígena.

Mourão diz: “Genocídio? Foi com Hitler e judeus, turcos e armênios”. Nós, atentos ao pedido do Human Rights Watch à Polícia Federal para proteger indígenas e populações tradicionais contra abusos na Amazônia, estamos torcendo para o genocídio indígena levar Bolsonaro ao Tribunal de Haia.

Há duas línguas, a do Brasil deles e a do nosso.

Temos um ministro que não vê aumento de imposto numa CPMF e não chama CPMF pelo nome. Nós sabemos que ninguém vai poder comprar mais um livro sem pagar os 12% de imposto, no cartão, no digital, no impresso na livraria, se livrarias ainda existirem para uma população cada vez mais inculta.

No Brasil deles, um capitão da PM, André Esteves, pode assumir a Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura e o próprio Ministério virar Secretaria vinculado ao Turismo.

No nosso, o cineasta Silvio Tendler criou um Ministério da Cultura virtual, o Estados Gerais da Cultura. Entre os grupos formados nasceu um responsável pelo “Inventário de Cicatrizes” sobre o desmonte da Cultura, da Arte, da Ciência e das Políticas Ambientais. Já reuniu 100 profissionais que decidiram colocar o ex-ministro Gilberto Gil à frente da pasta.

No Brasil deles o acervo da Cinemateca Brasileira, a fabricação de cultura em alto nível da Casa de Rui Barbosa não servem para nada além de abrigar “comunistas”.

No nosso Brasil, seria a descrição do paraíso como Jorge Luis Borges definiu uma biblioteca.

No Brasil deles, para não criar analfabetos o ministro Guedes sugere “doação de livros às populações mais pobres”.

No nosso, a pergunta: quem fará a seleção dos livros? E se for a Ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves? Ou o chanceler Ernesto Araújo? Ou Olavo de Carvalho?

No Brasil deles, a Frente Evangélica quer presidir a Câmara.

No nosso, o país é laico e eleger para o cargo gente sensível vai requerer uma nova democracia.

No Brasil deles, Flávio Bolsonaro quer que Paulo Guedes arrume “um dinheirinho” para obras e ações sociais. O Zero Um diz que um PM amigo pagou R$16,5 mil da prestação de um apartamento porque ele não queria ir ao Banco, e que todo dinheiro estranho da conta de sua mulher ocorria pela sua falta de tempo para tratar dessas coisas. Normal seu ex-assessor parlamentar, Fabrício Queiroz, ter depositado R$ 89 mil em 27 depósitos na conta da Primeira Dama, Michelle Bolsonaro. Normal também Zero Um querer trocar os promotores que apuram suas “rachadinhas”. Para o Centrão, agora no Brasil deles, ainda é cedo para se mexer no afastamento de Bolsonaro do Planalto.

No nosso Brasil, tudo se explica no artigo Por Que os Psicopatas Chegaram ao Poder, por George Monbiot no site Outras Palavras (27/06/19) sobre que tipo de líderes um sistema que estimula competição, disputa e rivalidade pode produzir. “Quem, em seu juízo perfeito, poderia desejar esse trabalho?”. A resposta inclui líderes com personalidade psicopata, narcisista, maquiavélica. Com tendência a manipulação do outro, disposição em mentir e enganar para alcançar seus objetivos, falta de remorso e sensibilidade, desejo de admiração, atenção, prestígio e status. Alguém se lembrou de Trump, Boris Johnson?

Lembra mais alguém? Para completar, Freud dizia que os grupos assumem a personalidade dos seus líderes.

No Brasil deles, 100 mil mortos não são nada. “Temos uma pequena crise, muito mais uma fantasia, que não é isso tudo que a grande mídia propaga pelo mundo todo”. “Até porque o brasileiro tem que ser estudado, não pega nada, tem o cara pulando em esgoto, sai, mergulha”. “Pelo meu histórico de atleta, se pegasse o vírus, seria uma gripezinha”. “A tal da cloroquina, não tem comprovação científica, mas também não tem comprovação científica que não é eficaz”. “Não sou coveiro, tá certo?”. “E daí?Quer que eu faça o quê? Vai morrer gente? Lamento, sou Messias mas não faço milagre”.

No nosso, é o choque dos mesmos 100 mil mortos em Hiroshima, 1945, e segundo Luiz Henrique Mandetta ao Globo (8/8/20), o ex-ministro “saído” do cargo pela inveja do presidente, “são 100 mil famílias sem uma palavra de conforto”.

No Brasil deles é natural montar um dossiê com 579 servidores públicos, professores, pensadores e afins, todos integrantes do movimento antifascista, que assinaram manifestos e protestaram pacificamente nas ruas. Eles serão investigados por uma Secretaria de Operações Integradas (Seopi), ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

No nosso Brasil, são escandalosas as explicações que o ministro André Mendonça prestou a pedido da ministra do STF, Carmem Lucia, sobre a ação do partido Rede Sustentabilidade. “Nem confirmo nem nego a existência”, disse o ministro, de algo que ele rejeita como “dossiê”. Na linguagem jurídica truncada, Mendonça se explica: “A investigação criminal tem como objetivo a apuração da materialidade, a produzir conhecimentos para assessorar o processo decisório”. Alguém entendeu?

Em outras palavras o ministro está desdizendo o óbvio. Ainda disse que “a atividade de inteligência não visa a um grupo específico” e o advogado da União, Bernardo Batista de Assumpção, acrescentou: “a ação contra o dossiê, baseada apenas em reportagem jornalística, à míngua de qualquer elemento probatório, não deve ter continuidade no STF”. Tudo muito dúbio sobre atividades sigilosas, usando este fato e “seu inerente caráter reservado” para justificar “a necessidade de preservação dos atores sociais e estatais tratados nas informações”. O ministro alega ser religioso (?).

E assim o Ministro se escafede de dar os nomes da lista, esses “elementos robustos de existência de concreta ameaça aos interesses nacionais”. Alguns dos nomes são Paulo Sérgio Pinheiro, ex-presidente da Comissão Nacional da Verdade, presidente da comissão internacional da ONU nomeado pelo conselho de Direitos Humanos, e membro da Comissão Arns. Pinheiro está perplexo, “O que digo e escrevo é público, o contribuinte está pagando para esses funcionários fazerem uma prática ilegal, inútil”.

Outros listados são o secretário estadual do Pará, Ricardo Balestreri, o cientista político da Universidade Federal da Bahia, Alex Agra Ramos, e o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ativo em trabalhos ligados a comunidades sociais e ex-secretário de Segurança Pública no início do governo Lula. Os três estiveram juntos em uma mesa no Congresso dos Policiais Antifascistas em 2018 e seus nomes constaram dos manifestos antifascistas e em defesa da democracia de 2016 e 2020.

“O procedimento é ilegal e inconstitucional, uma declaração do fascismo do governo e sobre como os engenheiros do caos, arautos do autoritarismo, definem movimentos, militantes intelectuais antifascistas. Para eles, somos um problema. Mas nossa constituição é antifascista e a população brasileira, os segmentos majoritários, se afirmam como antifascistas”.

Eles dizem que o sonho de Bolsonaro sempre foi recriar o SNI. Em um ano e meio a Presidência da República gastou R$ 161 milhões com ações de inteligência e segurança institucional que abrangem o próprio Bolsonaro, seu vice e sua família. Bolsonaro está se blindando. “Eu vou interferir”, foi a frase naquela reunião que vai ficar para a história e vem acoplada ao desejo do Zero Um de fechar o Congresso com um cabo e um soldado. “Este sonho está se convertendo no pesadelo dos brasileiros”.

Como escreveu Voltaire no Dicionário Filosófico que acaba de sair (Martins Fontes, 1.512 pg.), “É muito perigoso ter razão nos assuntos em que as autoridades estão completamente equivocadas”.

O Brasil deles contra o nosso vai nos empurrando para o abismo ou para o futuro, aquele Brasil, País do Futuro que o austríaco Stefan Zweig previu e que não chega nunca.

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Norma Couri é jornalista.