Em um intervalo de 24 horas, entre os dias 30 e 31 de julho, Jair Bolsonaro foi do Nordeste ao Sul em agendas para enfatizar sua pauta populista. Prática que não tem nada da tão aclamada, durante a campanha eleitoral de 2018, “nova política”.
Não! O que se percebeu é o político que ficou por décadas no Legislativo federal sem ter sido figura atuante em projetos para a sociedade brasileira. Agora, abusando do seu poder como presidente da República, Bolsonaro tenta vestir-se de um personagem: aquele que adora estar com o povo. Sentimento que não se traduz para quem tem vínculos tão próximos com milicianos.
Em um momento histórico que, em breve julgará sua gestão, principalmente por ser o “capitão” de um Brasil na sua maior tragédia sanitária e econômica, Bolsonaro mantém-se fiel ao princípio de minimizar a dor nacional de que já havia sepultado mais de 100 mil pessoas. Ele parece perseguir um objetivo de superar os Estados Unidos, cujo ídolo estrangeiro, também faz um desgoverno, preocupado apenas com as eleições de novembro.
Antes de vir a Bagé, no Rio Grande do Sul, no Piauí e na Bahia, em registros que proporcionaram ângulos “messiânicos”, esteve junto à massa, às vezes sem a máscara de proteção à Covid-19 ou com um típico chapéu nordestino e em cima de um cavalo. Fora o seu sorriso de Coringa, como se debochasse por ter “vencido” ao coronavírus, mostrando o quanto é um “guerreiro do bem”, ele pegou o avião presidencial e foi até Bagé, cidade fronteiriça com o Uruguai.
Lá, ele se sentiu em casa. Para quem não sabe, Bagé é uma cidade com forte vínculo militar. Por ser uma cidade de fronteira, há cinco quartéis no município. Historicamente, a figura do personagem militar está intrínseca na política, na cultura e na economia da cidade, principalmente pelo seu grande efetivo de soldados presentes no município. O irônico é que o homem que militarizou o governo federal foi expulso do próprio Exército brasileiro.
Em Bagé: aglomerações em torno do “mito”
Bolsonaro chegou de manhã para cumprir agenda política com o prefeito da cidade, Divaldo Lara. Entre esses compromissos, participou da inauguração de residenciais habitacionais e de uma escola cívico-militar. Contudo, foi na chamada Rainha da Fronteira, que ele pôde vivenciar seu sonho de juventude. O de se sentir um pouco como Emílio Médici. Entre uma e outra agenda, Bolsonaro participou de um almoço no quartel e para que o “show” transcorresse apoteótico como as paradas de 7 de setembro nos anos 70, Bolsonaro também desfrutou de um passeio pela cidade com o Landau que era usado pelo general Médici. E numa cidade regrada dentro de um programa de distanciamento controlado, onde decretos municipais impedem aglomerações sociais, Bolsonaro deitou e rolou. Não respeitou nenhuma exigência e com afinco se aproximou de cada um de seus militantes. O “mito” glorificou sua persona populista exibindo uma caixa de cloroquina como se fosse o crucifixo que expulsa um vampiro, ou um vírus. Patético como em outras atuações, Bolsonaro vangloria-se de seus atos circenses em um país que parece não enfrentar as duas maiores crises de sua história: a sanitária e a econômica.
Portanto, sua passagem por Bagé é carregada de representação simbólica que evoca as narrativas ufanistas criadas durante a ditadura militar. Essa imagem de “liderança forte do Brasil” poderia ser reproduzida em redes sociais e por veículos de comunicação. No entanto, aquilo que era uma imagem fundamentada em princípios do regime autoritário do passado, ganhava ares de pastiche, teatro bufo e piada em nosso atual momento. Afinal, como ator Bolsonaro não consegue emplacar nada mais do que aquele seu sorriso amarelo.
Mas é importante entender que essa idolatria à figura militar em Bagé também está baseada no ufanismo piegas de dizer que foi nesta terra que nasceu um presidente da República. Foi em Bagé que nasceu o general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Médici foi o presidente no período de maior opressão às liberdades civis no Brasil. Governou com mão de ferro o país e abusou dos poderes quase infinitos do AI-5. Não havia oposição política ou combate pela imprensa. Mesmo que pese para seu governo todas as barbáries de ser considerado o mais temido dos cinco militares que mandaram no Brasil por 21 anos, Médici sabia usar a bandeira do populismo para ganhar (até hoje) a simpatia de alguns brasileiros.
Como já analisei aqui no Observatório da Imprensa, em outro artigo, a política adotada pela ditadura favorecia a concentração de renda em classes mais altas; utilizava a máquina pública para destacar uma propaganda ufanista com obras “faraônicas” — muitas não entregues até hoje — essas incentivadas pela política norte-americana de empregar recursos para a garantia de sua doutrina de segurança nacional, dentro de um contexto de geopolítica global de guerra fria.
Afora isso, tivemos um forte controle dos veículos de comunicação sob a égide da censura ou dos fartos patrocínios financeiros que ajudaram a efetivar essa imagem de um Brasil moderno, um gigante que nascia. E que continha qualquer ameaça com a violência necessária, afinal era vital manter esse país distante da “ameaça do comunismo”.
Médici soube abusar do milagre e do futebol
Médici alternava sua postura feroz de um general, com a de um “pai” que sabia brincar e adular seus “filhos” quando necessário. No Rio Grande do Sul, utilizou como poucos a figura do gaúcho, pois tinha vínculos familiares com o setor agropecuário; então lá estava aquele bageense, montado a cavalo, como tantos peões de estância. Sem contar as fotos sorvendo um chimarrão. Mas o mais engraçado disso era a utilização do futebol como arma simbólica para o tornar “semelhante” aos seus governados. Dizia que torcia por três equipes: Guarany de Bagé, Grêmio e Flamengo.
Teve um trunfo publicitário com a Copa de 1970. Com o tricampeonato para o Brasil, Médici propagou uma onda ufanista idealizada por qualquer ditador. Talvez apenas Videla, com a Copa da Argentina em 1978, tenha conquistado feito igual. E tudo isso fez com por anos e, incrivelmente, até hoje, que muitos o defendam como um verdadeiro presidente do povo brasileiro. Essas distorções em termos de narrativas históricas são muito utilizadas, de tempos em tempos, para evocar uma época idealizada por memórias que podem ser “fabricadas”, principalmente se discursos políticos, com cunho de propaganda, são veiculados como a única forma de fazer o país a voltar a ser um “Brasil do futuro”.
O legado de milhares de mortos
Bolsonaro tenta isso. Porém, não esperava enfrentar uma crise como a pandemia, e como não tem um projeto de governo, recorre a artifícios de um ideal de país e de um tempo fabricado sob as mordaças de uma democracia que na época estava castrada.
Ou seja, ele busca utilizar símbolos de outrora, tanto do populismo canhestro, tão arraigado na história do Brasil, como o de um país “construído” durante a ditadura militar. Em Bagé, o simbolismo que tanto empregou em outros lugares do Brasil, ganhou um tom trágico para a nossa história. Com 100 mil mortos, o presidente galvanizava a imagem do mais cruel dos ditadores. Centraliza para si um legado que a história precisará analisar com profundidade nos próximos anos: como alguém vitorioso em um processo democrático violentou a democracia em prol de um projeto de permanência no poder, como a de um reles ditador setentista das “republiquetas de bananas”. Mais do que isso: ficará em sua conta esse morticínio de milhares por ter simplesmente cruzados os braços e ridicularizado a pandemia como uma mera “gripezinha”. Triste, terrível, um pesadelo que precisamos acordar!
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Marcelo Pimenta e Silva é jornalista, pós-graduado em Comunicação Mercadológica com artigos publicados em revistas e sites acadêmicos com textos que enfoquem análise da mídia, movimentos sociais, história política e da imprensa e da contracultura.