Publicado originalmente pelo objETHOS
A semana que antecedeu os 55 anos do Golpe Militar de 1964 abriu uma fenda de perplexidade no Brasil e no mundo. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) pediu ao Ministério da Defesa que orientasse as unidades militares a realizar comemorações alusivas ao golpe, gerando uma série de manifestações contrárias.
A orientação defende o vergonhoso legado que a Ditadura Militar deixou para o Brasil. O caso abre a reflexão sobre uma leitura crítica do que, de fato, significou a ditadura para a história brasileira e que mecanismos criam essa dificuldade de superarmos práticas hediondas e corruptas, marca dos 21 anos de Governo Militar. Uma chave importante para entender esse período é o posicionamento dos principais veículos de imprensa da época — alguns deles atuantes ainda. A grande maioria se posicionou favorável ao golpe e atuou para produzir o cenário da deposição de João Goulart.
A ditadura foi uma etapa nacional de retrocessos em termos sociais, culturais, políticos e econômicos. Segundo informações do site Memórias da Ditadura, o estado brasileiro promoveu o rebaixamento do campo educacional, a censura à arte e à imprensa, a cassação de direitos políticos, casos de corrupção não investigados, torturas e assassinatos. Recente reportagem do site The Intercept localizou documento inédito no arquivo histórico do Ministério do Exterior da Itália, em que o número de presos nos primeiros dias do golpe militar pode ser quatro vezes maior do que se estimava.
O Ministério Público Federal foi uma das primeiras instituições a se posicionar contra a tentativa de comemorar o Golpe. Seguida de outras organizações, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Instituto Vladimir Herzog que apresentaram denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU). O repúdio foi unânime entre entidades sindicais, movimentos sociais e organizações não governamentais, sobretudo, aqueles que defendem os direitos humanos. Após a série de críticas, o presidente recuou no termo “comemorações” e afirmou ter sugerido “rememorar” o episódio que classifica como “Revolução de 64”.
A posição pró-golpe de Bolsonaro não é uma novidade. Ainda como deputado, protagonizou diversos episódios em que elogiou os governos militares e, por diversas vezes, obteve espaço na imprensa. Em sua declaração de voto no impeachment de Dilma, homenageou um torturador do regime, Brilhante Ustra. “Nesse dia de glória para o povo brasileiro tem um nome que entrará para a história nessa data, pela forma como conduziu os trabalhos nessa casa. Parabéns, presidente Eduardo Cunha. Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim” (COLETIVO OITENTAEDOIS, 2016, p. 118).
A orientação de Bolsonaro também gerou desdobramentos em seu próprio governo, que sofre um cotidiano de contradições e desentendimentos públicos. De acordo com a imprensa, a cúpula militar no governo considera que a polêmica poderia prejudicar ainda mais a situação do governo na já conturbada articulação da Reforma da Previdência. A ideia de comemorar 64 também pode ser uma cortina de fumaça para distrair a opinião pública, diante da proposta impopular da reforma. Mais uma vez, a guerra de informações enviesadas e a pouca transparência no debate público, características do Governo Bolsonaro, trouxe à tona tema que, supostamente, geraria consenso no repúdio.
Não foi bem assim. Na justiça brasileira não houve consenso sobre comemorar ou não a ditadura. Na sexta-feira (29), a Justiça Federal de Brasília proferiu decisão proibindo o governo de fazer qualquer comemoração ao golpe de 1964. A juíza Ivani Silva da Luz acolheu um pedido de liminar da Defensoria Pública da União. De acordo com o parecer da magistrada, “trata-se de um pedido de urgência para que se abstenha de levar a efeito qualquer evento em comemoração a implantação da ditadura no Brasil (Golpe de 1964), proibindo especialmente o dispêndio de recursos públicos para esse fim”, podendo gerar multa e caracterizar ato de improbidade administrativa. No dia seguinte (30), a desembargadora de plantão do Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1), Maria do Carmo Cardoso, cassou a decisão da Justiça Federal do Distrito Federal, alegando que a medida do governo está dentro das competências da administração e que ainda não houve violação da legalidade ou de direitos humanos.
Simetrias
Em sua conta no twitter, “a mídia livre” do governo, segundo ele próprio, Bolsonaro se restringiu a usar as palavras de Roberto Marinho como justificativa e padrão moral para a defesa do golpe. Embora busque atacar as organizações Globo e comprovar a tese da “Revolução de 64”, a tuitada ajuda a relembrar o papel preponderante das grandes corporações midiáticas na desestabilização da democracia no Brasil.
A história nos conta como os grandes veículos de comunicação foram essenciais para criar o clima do Golpe e consolidá-lo em 1964. A maioria dos veículos de imprensa aderiram ao Golpe e promoveram o ambiente necessário para que ele se instalasse. De acordo com Dantas (2014),
Os grandes jornais do eixo Rio-São Paulo vinham, simultaneamente à conspiração que avançava nos quartéis, ampliando a cada dia o espaço para respaldo ao movimento. Alguns desses veículos, como no caso de O Estado de S. Paulo e O Globo, além do notório Tribuna da Imprensa, participavam ativamente da conspiração. Alguns dirigentes de grandes empresas jornalísticas faziam questão de alardear a sua condição de conspiradores. Em entrevista que me concedeu em 2005, o jornalista Ruy Mesquita, diretor do Grupo Estado, afirmou, ao ser perguntado sobre o apoio dado por seus jornais ao golpe: ‘Não só apoiamos, como conspiramos’.
Esse episódio da história guarda simetrias com o posicionamento da grande mídia na atualidade. Basta observarmos os caminhos tomados pelo jornalismo desses veículos desde 2015. Assimilaram a narrativa do espetáculo, construída pela cúpula da operação Lava Jato, sem questionar seus excessos; promoveram a agenda do impeachment de Dilma Rousseff, enquadrando a corrupção como relativas aos governos petistas e repetindo um discurso desproporcionalmente negativo sobre a economia; e atuaram com “neutralidade”, diante dos discursos de ódio de Jair Bolsonaro, criando um ambiente permissivo à violência e ao preconceito que dominaram o processo eleitoral de 2018.
Se a enxurrada de notícias falsas são apontadas como a grande vilã que conduziu o ultraconservadorismo ao poder, cabe também diagnosticar em que terreno ela desaguou de forma tão violenta. A cobertura da mídia teceu uma campanha antecipada de desinformação e proporcionou um ambiente que conduziu as pessoas ao erro e à violência. A falsa neutralidade dos principais veículos de comunicação reverberou, sem críticas, as posições anti-democráticas, de apologia à violência e ao preconceito, do então deputado, Jair Bolsonaro. Na falsa intenção de “ouvir os dois lados”, a imprensa autorizou o seu público a ler incitações ao crime como liberdade de expressão. É uma forma também de se abster de um dever ético do jornalismo: a defesa dos direitos humanos. A história da grande imprensa brasileira se repete, primeiro como tragédia, agora como farsa.
Sobre comemorar ou não o Golpe de 1964, uma cobertura coerente com o papel do jornalismo para o fortalecimento da democracia estaria empenhada em questionar como é possível um presidente se manifestar em defesa de um regime ditatorial sem que isso tenha consequências graves para si e para o seu governo.
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Clarissa Peixoto é mestranda no POSJOR e pesquisadora do objETHOS.
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Referências
COLETIVO OITENTAEDOIS. Câmara dos deputados: Sessão 091 de 17/04/2016. Coletivo Oitentaedois. São Paulo, 29 de abril de 2016.
DANTAS, Audálio. A mídia e o golpe militar. Revista Estudos Avançados. Vol.28 no.80. São Paulo:USP. Jan./Apr. 2014. Disponível aqui.