Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Perplexidades sobre o julgamento do HC impetrado por Lula

O julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula (HC 152.752), na última quarta-feira (04/04), suscita uma série de dúvidas e perplexidades para qualquer estudioso sério do Direito.

Começo pela insistência do ilustre Ministro Alexandre de Moraes no argumento retórico de que diversas normas internacionais de direitos humanos não exigem, expressamente, o trânsito em julgado para início da execução da pena.

Com a devida vênia, questiono: qual a vinculação lógica disso com o problema interpretativo em questão? Com efeito, o caso em análise não envolvia nenhum tipo de debate sobre normas de direito internacional público. O problema em questão era outro, bem mais objetivo. Qual seja: o fato de que a nossa Constituição Federal estabelece, sim, expressamente tal exigência.

Se o texto do Art. 5º, LVII da C.F/88 (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) é mais ou menos “exigente” do que a convenção internacional X, Y ou Z, isso é coisa que pouco importa quando o tema em análise é a constitucionalidade ou não do início da execução da pena após a condenação em segunda instância.

O argumento do Ministro Alexandre de Moraes seria sólido, e faria muito sentido, se figurasse em um parecer defendendo a tese de que a redação do referido artigo deveria ser alterada via emenda constitucional, a fim de “adequar” a Constituição Federal brasileira aos “padrões” dos tratados e convenções internacionais sobre direitos e garantias fundamentais. Mas é impossível deixar de observar que se trata de um argumento inútil e incompreensível se o objetivo é defender a excêntrica ideia de que o Art. 5º, LVII da C.F/88, de alguma forma, não estaria determinando aquilo que está literalmente determinado ali.

Por mais que alguém possa desejar uma interpretação ativista que mude o sentido óbvio e literal do texto, persiste o fato de que quem não pode “ser considerado culpado” é, simplesmente, inocente. Diante disso, questiono: como é que um inocente (ou, se o leitor preferir, aquele que não será considerado culpado) pode ser submetido à execução da pena? Isso nos levaria à institucionalização de uma teratológica figura da “prisão de inocente”!

Não existe, aqui, alternativa jurídica lógica: ou se cumpre o comando constitucional de viés garantista, ou se altera o texto e o sentido da Constituição – o que precisaria ser feito pela via legislativa, por meio de emenda constitucional, e não por força de ativismo judicial discricionário.

O discurso moral de que a literalidade do texto normativo “não mais atende aos anseios e necessidades contemporâneas” (ou qualquer palavra de ordem nesta mesma linha) não autoriza o intérprete constitucional a aterrissar em conclusão que agride a literalidade do texto constitucional, sobretudo quando se trata de matéria que se insere no contexto de direitos e garantias fundamentais.

Esta verve ativista pôde ser vista, também, na fundamentação do voto do ilustre Ministro Barroso, conhecido pela sua defesa aberta da discricionariedade judicial como instrumento de avanço social. (1)

Em resumo, Barroso acredita – e sua postura neste julgamento foi um perfeito retrato da principiologia que o orienta – que as cortes superiores operariam como uma espécie de aristocracia esclarecida e iluminada perante a sociedade. Nesta condição, o STF deve se sobrepor às demoras, incoerências e dificuldades do processo democrático representativo (para não falar dos medíocres representantes eleitos) e, de forma proativa, fazer o país avançar “aos saltos”, por meio de escolhas políticas estratégicas feitas por uma vanguarda iluminista intelectocrática, encastelada no Poder Judiciário. Afinal de contas, para Barroso, “a história é uma marcha em direção ao bem” (a frase foi proferida durante o julgamento em análise) e na dianteira desta marcha estariam os protagonistas desbravadores do mundo melhor: os juízes.

Não tenho a menor dúvida de que o Ministro Barroso, um dos grandes constitucionalistas do país, segue tal crença orientado pelos melhores objetivos morais. Não duvido, nem por um segundo, de seus bons sentimentos e intenções. O problema – e nem toda a indiscutível qualidade intelectual de Barroso é suficiente para transcender este óbice – é que esta postura é, sempre, antidemocrática. Independentemente do que está em jogo.

Exemplifico: como cidadão, sou abertamente a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas me posicionei expressamente contra (e escrevi isso já na primeira edição do meu livro “Positivismo Jurídico e Discricionariedade Judicial”, publicado em 2015) a legalização desse tipo de união por meio do ativismo do STF, ao arrepio do texto constitucional. (2)

O motivo é elementar: não importa se uma questão, em debate em um dado julgamento, privilegia um desejo progressista, conservador, “de esquerda” ou “de direita”. O que importa é que o Poder Judiciário jamais está autorizado, no Estado Democrático de Direito, a passar de “intérprete” para proprietário dos sentidos do texto constitucional, tomando para si poderes que não lhe cabem e atropelando o processo legislativo e as prerrogativas dos representantes democraticamente eleitos.

Em relação ao voto da ilustre Ministra Rosa Weber, me valho de uma observação feita pelo professor José Emílio Medauar Ommati, autor do livro “Teoria da Constituição” (entre outras obras), que foi buscar em uma passagem de Ronald Dworkin a demonstração clara de que o voto da ministra se valeu da autoridade do nome do autor precisamente para justificar um “tanto faz” que implica na mais completa negação de tudo aquilo que Dworkin defendia com tanto vigor.(3)

Isso para não falar, evidentemente, do caráter ilógico e inexplicável da postura de “se curvar a uma maioria” que não existe. Se maioria não haveria sem o seu voto, a ministra simplesmente não pode, do ponto de vista lógico, justificar a sua decisão como uma “deferência à maioria”. Não se trata, aqui, de uma impropriedade jurídica, mas sim de um absurdo lógico – claro como a luz do dia mesmo para qualquer leigo em Direito.

Feitas estas observações, não estou querendo dizer, com isso, que havia possibilidade de uma decisão realmente “boa” no julgamento do referido HC, pelo menos não sob o aspecto social e político. A solução adequada, aqui, repousaria no campo da ficção científica: seria entrar numa máquina do tempo e evitar que o Supremo atropelasse a Constituição com sua desastrosa reviravolta jurisprudencial de 2016.

Explico. Ao manter a posição de 2016, o STF endossou o absurdo paradoxo vigente nos últimos dois anos: uma interpretação constitucional que agride frontalmente a literalidade de texto constitucional. Pior: texto constitucional que, como já frisei, tem natureza de direitos e garantias fundamentais! É uma decisão juridicamente inadequada, que ratifica o erro anterior, numa postura carregada de ativismo e discricionariedade.

O problema é que, caso o STF tivesse decidido pela revisão da decisão de 2016, voltando a respeitar a Constituição no sentido claro e inequívoco do seu texto normativo, a corte teria passado ao país uma imagem de indecisa, casuísta, oportunista e assistemática. Seria, à toda evidência, acusada de tentar “limpar a barra de políticos corruptos” (para usar o linguajar tão característico do senso comum populista e “revoltado” que predomina na atmosfera social e política do Brasil nos dias que correm).

Teria sido, é claro, a decisão juridicamente correta e constitucionalmente adequada: a admissão pública e explícita de que a revisão de 2016 foi uma “barbeiragem hermenêutica” grosseira. Mas seria, ao mesmo tempo, uma decisão com o potencial de gerar insegurança jurídica, descrença institucional e que poderia agravar o quadro de uma democracia que já se encontra muito perto da lona (embora seja discutível se a decisão tomada também não teria o condão de gerar estes mesmos efeitos, em maior ou menor grau).

Nunca é demais lembrar que foi o próprio STF que “se enfiou” neste lamentável buraco negro, por meio do fiasco da decisão de 2016. Agora, no ambiente politicamente deteriorado do Brasil contemporâneo, onde até o comandante do exército se sente no direito de enquadrar e intimidar publicamente o STF na véspera de um dos julgamentos mais divisivos da história da Nova República (4), não existia de fato nenhuma saída “boa” no sentido político e social. O momento para nova análise da matéria não poderia ser pior.

Há, por fim, outros elementos que recobrem o julgamento em questão de extremo mal-estar, e que são preocupantes para a democracia brasileira. Primeiro: é digno de nota que dois ministros da mais alta corte do Judiciário pátrio tenham se manifestado abertamente, durante o julgamento, para denunciar pressões externas indevidas sobre o STF. Celso de Mello referiu o inaceitável “recado” dado na véspera pelo comandante do exército. Gilmar Mendes, por sua vez, denunciou uma pressão midiática que ele percebe como “sem precedentes”. O certo é que nada disso é “normal” em uma democracia. São circunstâncias preocupantes, que apontam para a progressiva deterioração do ambiente democrático pátrio, e que não podem ser naturalizadas.

Também causa estranhamento e perplexidade a observação de que, ao final do julgamento, “venceu a estratégia”. Se a afirmação tivesse partido de um simpatizante de Lula, entristecido com o resultado, ela certamente não teria maior importância. Afinal de contas, quem perde nunca gosta da decisão e está sempre inclinado a se ver como perseguido ou injustiçado.

A questão preocupante, no entanto, reside no fato de que o autor da frase é ninguém menos do que o ilustre Ministro Marco Aurélio Mello, e a afirmação foi proferida em alto e bom som em plena sessão.

Ora, as dúvidas que surgem disso são desconcertantes. Sintetizo: qual estratégia? De que tipo? Partindo de quem? Com quais objetivos? Evidentemente, se existe uma “estratégia” de bastidores, não revelada, então existia também um objetivo igualmente não revelado. Que objetivo era este?

Por mais caprichada e pomposa que seja a forma, são coisas como essa que denunciam a precariedade da substância. São questões (manchas?) como estas que ficam, efetivamente, para análise histórica futura.

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Henrique Abel é doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com período de estágio doutoral como Visiting Student da School of Law of Birkbeck, University of London (2015). Mestre e Bacharel em Direito pela UNISINOS/RS, com pós-graduação lato sensu pela Escola Superior da Magistratura da AJURIS-RS. Advogado militante. Autor do livro “Positivismo Jurídico e Discricionariedade Judicial” (Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2015) e de diversos artigos publicados. Associado Efetivo do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul – IARGS.

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Notas:

“[…] procurei demonstrar que cortes supremas – como o Supremo Tribunal Federal brasileiro, por exemplo – passaram a desempenhar, simultaneamente ao papel contramajoritário tradicional, uma função representativa, pela qual atendem a demandas sociais que não foram satisfeitas pelo processo político majoritário. Por evidente, no desempenho de tal atribuição, o juiz constitucional não está autorizado a impor suas próprias convicções. Pautado pelo material jurídico relevante (normas, doutrinas, precedentes), pelos princípios constitucionais e pelos valores civilizatórios, cabe-lhe interpretar o sentimento social, o espírito de seu tempo e o sentido da história. Com a dose certa de prudência e de ousadia”. BARROSO, Luís Roberto. A função representativa e majoritária das cortes constitucionais: In: Hermenêutica, constituição, decisão judicial: estudos em homenagem ao professor Lenio Luiz Streck. Alexandre Morais da Rosa … [et al.] (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016. p. 175.

“Outro exemplo prático de discricionariedade judicial na prática jurisdicional brasileira pode ser extraído do amplamente noticiado julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132 pelo Supremo Tribunal Federal em maio de 2011. O STF, por unanimidade, reconheceu a possibilidade de união estável para casais do mesmo sexo – malgrado o Art. 226, § 3º da CF falar expressamente de união estável ‘entre o homem e a mulher’. Trata-se do típico caso no qual se confundiu a justiça da pretensão material em si com o alcance dos poderes da mais alta Corte do país. Não se trata de ser ‘contra’ ou ‘a favor’ da união civil homossexual em si, mas sim do fato de que a Constituição Federal expressamente vedava tal possibilidade, razão pela qual qualquer alteração nesse sentido precisaria necessariamente se dar, democraticamente, pela via legislativa. Ora, como falar em ‘avanços nos costumes sociais’ se não confiamos no Poder Legislativo para traduzir as mudanças sociais na forma de novas normas?”. ABEL, Henrique. Positivismo e Discricionariedade Judicial: a filosofia do Direito na encruzilhada do Constitucionalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 161.

“Em certas circunstâncias, o ceticismo pareceria não somente estranho como também escandaloso. Imagine um juiz que envia um réu penal para a prisão, ou talvez para o corredor da morte, ou que obriga um réu cível a pagar uma imensa indenização, mas admite no meio da sentença que outras interpretações das leis, que exigiriam decisões contrárias, são tão válidas quanto a sua. Ou pense num amigo que exige que você cumpra uma promessa onerosa mas admite que suas palavras são igualmente passíveis de uma interpretação diferente, que não implica promessa nenhuma.” DWORKIN, Ronald. A Raposa e o Porco-Espinho: Justiça e Valor. São Paulo: Martins Fontes, 2015. p. 191. A contradição também foi devidamente apontada pelos professores Lenio Streck e Emilio Peluso Meyer. Ver: “O HC de Lula — maioria transformada em minoria: a “colegialidade” em ação!”. Em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-05/opiniao-hc-lula-maioria-transformada-minoria#_ftn1

O “recado” ao STF, redigido pelo comandante do exército, general Eduardo Villas Bôas, publicado em rede social em nome do exército e lido em tom soturno de filme de terror pelo apresentador William Bonner, no final da edição do Jornal Nacional da véspera do julgamento, constitui provavelmente a interferência mais direta e preocupante dos militares em questões práticas de condução política do país desde a redemocratização. A manifestação foi repudiada, entre outros, pela Anistia Internacional e pela Associação Nacional dos Procuradores da República.