Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Queimando livros e pessoas

Quem queima livros acabará por queimar pessoas.

O poeta romântico alemão Heinrich Heine, que escreveu esta máxima, morreu há 165 anos, mas o secretário de Cultura Mario Frias, que é mesmo especial, continua a sua propagação mundo afora, como fez esta semana na abertura da Bienal de Veneza. Estava deslumbrado por estar em Veneza pela primeira vez e por ter ouvido falar, também pela primeira vez, na homenageada da 17ª Mostra Internacional de Arquitetura, Lina Bo Bardi. A representação custou R$1,1 milhão, divididos entre governo federal e Fundação Bienal de São Paulo. Mas Frias, depois dos livros, da Cinemateca Brasileira, da Ancine, da Casa de Rui Barbosa e do que resta da cultura no Brasil, agora queima pessoas.

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Numa entrevista à Folha de S.Paulo em Veneza, o secretário se disse impressionado “com aquela imersão, representa a alma do brasileiro que, apesar das dificuldades, não perdeu a alegria”. E se disse feliz “que a Bienal esteja enaltecendo o homem comum”. Sobre Lina Bo Bardi, “eu não conheço nada, desculpa! Me ajude”.

A representação foca os projetos de Lina Bo Bardi realizados entre o fim do Estado Novo e os anos JK (1946-1961) e as soluções encontradas pela arquiteta para diminuir as desigualdades habitacionais nas grandes metrópoles, como São Paulo. Além de focar na arte popular, artesanal, Lina é responsável pelo projeto do Museu de Arte de São Paulo, do teatro Oficina, do SESC Pompeia, todos em São Paulo, e pelo Museu de Arte Moderna da Bahia (Solar do Unhão). Mas antes de tudo, em 1946-47, morou com o marido, Pietro Maria Bardi, na rua Anchieta, 16, 8º andar, no Leme, encantou-se com o Palácio Capanema (Ministério de Educação e Cultura) e queria que Assis Chateaubriand fundasse o museu no Rio, mas acabou vindo para São Paulo onde estava o dinheiro e assim nasceu o MASP. Lina ganhou várias exposições e biografias pelo mundo — a última recém-lançada pela editora Todavia, Lina: Uma Biografia. Há justiça, responsabilidade social, vida coletiva por trás de toda sua obra e a arquiteta ítalo-brasileira (1914-1992) leva o Leão de Ouro pela maneira como combinou arquitetura, natureza, vida e comunidade.

O que está exposto em Veneza não tem nada de alegria nem de homem comum. O secretário se serviu de clichês que não significam nada para esconder a ignorância do assunto. “É fantástico quando um brasileiro transborda essa camada de artistas importantes”(?), comentou na inauguração do pavilhão brasileiro.

Nossos representantes nos matam de vergonha lá fora. Não bastam Abraham Weintraub na Educação e Ernesto Araújo na Chancelaria. Quando a então primeira-dama Rosane Collor visitou Portugal no início dos anos 1990, de minissaia ao lado do marido, respondeu, quando perguntaram sobre seus projetos na Presidência: “ter um filho, usar um shampoo diferente a cada dia da semana”. Regina Duarte, a quase antecessora de Frias na pasta da Cultura, teria feito melhor, porque seu vexame na mesma época foi não dizer nada ao ser homenageada em Lisboa numa cerimônia de gala, e o comentário geral da plateia foi: “ela só sabe rir?”.

Mario Frias teria perdido a chance de conhecer Veneza se soubesse que Lina Bo Bardi em 1970 respondeu a um inquérito militar por ter emprestado sua Casa de Vidro, tombada mais tarde pelo Condephat, para uma reunião da esquerda armada, com a presença do “inimigo número um” do então regime, Carlos Marighela, assassinado pelo DOPS no ano anterior, 1969.

O que Mario Frias não conseguiu em Veneza foi cumprir o Salmo 96:12, “regojizem-se os campos e tudo o que neles há! Cantem de alegria todas as árvores da floresta”, como Alexandre Saraiva postou. O delegado foi derrubado da chefia da PF no Amazonas ao acusar o ministro Ricardo Salles de boicote à fiscalização ambiental. Saraiva reagiu assim quando soube que o ministro está sob suspeita na Operação Akuanduba. O nome é homenagem à divindade dos índios Araras que, segundo a mitologia, detém, com o toque de flauta, os excessos cometidos. A operação quebrou sigilos bancários, fiscais e investiga Salles por corrupção ao facilitar o contrabando de R$ 14,1 milhões em transações de madeira ilegal em terras indígenas protegidas — que são por sinal as mais bem preservadas da Amazônia.

Mário Frias em visita esta semana à Bienal também “queimou” a vídeo-instalação Oca Red gravada na aldeia kuikuro, no Alto Xingu (MT). O secretário simplesmente dispensou a proposta apoiada pela Queen Mary University de Londres que propõe política ambiental com conexão à natureza e proteção aos povos indígenas. A sala dedicada à Amazônia tem colaboração do designer Gringo Cardia que, junto com o cineasta Takumã Kuikuro, enviou a Veneza um tronco de madeira do Kuarup, a festa sagrada dos povos do Xingu, que será encenada no encerramento da Bienal em novembro.

Foi uma ótima oportunidade perdida por Mário Frias para discorrer sobre a obra de Antonio Callado (1917-1997), Quarup (editora José Olympio, 574 páginas), mais um livro queimado neste governo que aproveita para tocar fogo nos guardiões da floresta. Mario Frias “queima” os indígenas, conhecedores dos segredos da natureza e representantes da pré-história da humanidade, como Sebastião Salgado registra nas fotos que o governo fez a grosseria de retirar da FUNAI. Queimação e Malhação combinam com o secretário que deixou de aprender lições de vida ao evitar o Oca Red, um erro cometido também na invasão dos portugueses em 1500 como Oswald de Andrade já explicou no poema Erro de Português: “Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ o português”.

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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).