A turnê de despedida de Roger Waters provocou considerável repercussão na Grande Mídia, sendo matéria de artigos em jornais tradicionais como a Folha de São Paulo e o Estadão. A cobertura midiática do espetáculo foi, praticamente, unânime no reconhecimento do aspecto monumental e deslumbrante do show, o que parece consenso entre todos que estiveram presentes no Allianz Parque nos dias 11 e 12 de novembro.
Porém, apesar do reconhecimento destes aspectos, também podemos perceber que ambos os jornais citados anteriormente publicaram artigos que criticam a arte politicamente engajada de Roger Waters. Enquanto o artigo do Estadão critica o que seu autor chama de “excesso de militância” [1], o texto da Folha optou por insinuar que muitos presentes no Allianz Parque teriam classificado os protestos presentes no show como “falação demais” [2], embora o autor não tenha entrevistado nenhuma pessoa que assistiu ao espetáculo.
Primeiramente é preciso destacar que diferentes indivíduos, interpretam e reagem de formas diversas diante de uma expressão artística, o que significa que a representação que cada pessoa produz diante de um espetáculo está intimamente relacionada com o repertório e com a visão de mundo que este indivíduo possui. Todos possuímos conceitos prévios que afetam diretamente a maneira como recebemos as mensagens difundidas durante um show politicamente engajado como o de Roger Waters.
Um segundo ponto importante é que apesar das diferentes representações possíveis de uma mesma expressão artística, existem escolhas ideológicas envolvidas na publicação de um determinado artigo em um veículo de comunicação. Ou seja, provavelmente existiam diferentes textos, apresentando diferentes visões sobre a turnê de despedida de Roger Waters, porém, cada jornal optou por publicar aquele que era mais representativo de sua linha editorial. Desse modo, tanto a Folha de São Paulo, quanto o Estadão, optaram por publicar textos que revelaram um incômodo com o engajamento político do artista, conhecido por suas críticas ferozes ao fascismo e ao autoritarismo de maneira geral.
Antes de buscarmos compreendermos o incômodo da Grande Mídia com a expressão artística do ex-integrante do Pink Floyd, convém abordarmos aspectos importantes do show em questão. Não é exagero dizermos que aqueles que estiveram no Allianz Parque experimentaram uma verdadeira imersão reflexiva, a partir de uma experiência sensorial incrível. Toda a tecnologia e o arcabouço técnico empregado na produção do espetáculo aguçou os sentidos de todo o público presente. A potência do som e distribuição dos equipamentos de reprodução sonora fez com que fosse possível, não somente escutar a música, mas sentir o impacto das ondas sonoras em nossos corpos. Instrumentos e frases impactantes podiam ser escutadas ora de maneira frontal, ora como se estivéssemos ouvindo vozes e sussurros ao pé do ouvido.
A iluminação potente e cuidadosamente planejada, aguçou o sentido da visão, propiciando uma experiência psicodélica interativa, na qual era possível realizar uma imersão na obra apresentada. Diferente do que ocorre em um show convencional, o público não se sentia um espectador contemplando o espetáculo, mas sim, interagindo com a obra por meio de experiências sensoriais, que despertavam muita reflexão e impactavam de maneira arrebatadora.
O início do show, coloca todo o público dentro de um filme, em uma refinada relação entre uma experiência cinematográfica e musical, extremamente imersiva. O roteiro, impactante, inicia-se em um cenário distópico (que lembra Gotham City), marcado pela opressão e pelo totalitarismo. As imagens projetadas causa a impressão de que estamos caminhando por esta cidade, observando as consequências visíveis do autoritarismo.
Aos poucos, a obra ganha contornos de um documentário, apresentando a realidade de opressão e autoritarismo presente em diversos países, abordando a violência policial, miliciana e estatal, praticada em países como: Alemanha, EUA, Reino Unido, Brasil, República Tcheca, Israel, entre outros. São citados casos emblemáticos, como o de George Floyd, Breonna Taylor e Marielle Franco, expondo a violência extremada e o silenciamento das vozes dissonantes nas sociedades capitalistas. Também são feitas denúncias sobre a opressão vivida diariamente por palestinos, pessoas trans, negros, mulheres e indígenas, chamando a atenção para a importância da defesa dos direitos humanos.
O espetáculo ainda realiza ácida crítica a política externa estadunidense, classificando diversos presidentes dos EUA como criminosos de guerra, fazendo menção a conflitos externos iniciados pela principal potência militar do mundo, ao longo da história.
Porém, a toada da obra não se restringe a denúncia da violência institucionalizada nas sociedades capitalistas, tão pouco a atuação da elite oprimindo aos mais pobres. O show transita, a todo momento, por experiências de resistência reais ou simbólicas. É feita referência, por exemplo, ao caso de Standing Rock, em Dakota do Sul (EUA), considerada a maior mobilização de comunidades indígenas nos últimos 100 anos. Também é abordada a resistência por meio da expressão artística e cultural de diversos povos, em diferentes regiões do mundo, explorando a potência da arte e da cultura como forma de resistir e de existir diante das mazelas do sistema capitalista.
A questão da opressão e da resistência ainda foi explorada de maneira psicodélica e simbólica com o tradicional porco inflável e com uma gigante ovelha inflável que circularam por todo o estádio. Neste momento da obra, fica evidente a influência de “Revolução dos Bichos”, de George Orwell. No mencionado livro, qualquer diálogo crítico contra o governo era sempre impossibilitado pelo balido das ovelhas, que representavam a massa de manobra que sustentava o governo no poder, impedindo qualquer reflexão crítica ao sistema. Na obra apresentada por Roger Waters, as ovelhas deixam o papel de apoiadoras acríticas do regime instituído e formam um exército voltado para a resistência e para a derrubada do governo. Crítico a política armamentista, o músico não retrata as ovelhas da resistência portando armas, mas sim treinando karatê, como forma de enfrentar a violência estatal. Os 4 grandes telões do palco ainda exibiram as mensagens: “resista ao capitalismo”, “resista ao fascismo” e “resista à guerra”.
Além de George Orwell, mensagens nos telões ainda expunham outras referências importantes para Roger Waters, como Aldous Huxley e Dwight D. Eisenhower, dizendo que todos eles estavam certos, em relação às denúncias, feitas em suas obras, sobre os problemas da vida moderna. Desse modo, o artista aprofundava suas críticas ao grande capital, ao autoritarismo, a desigualdade e aos interesses nefastos de grandes burgueses, especialmente aqueles ligados a indústria armamentista.
A apresentação de referenciais teóricos importantes para Roger Waters também revelou outro aspecto de seu espetáculo, o viés autobiográfico. O artista abordou problemas vividos em seu primeiro casamento, além da perda do companheiro de infância Syd Barrett, com o qual fundou a banda Pink Floyd. Waters ainda homenageou sua esposa Kamilah e seu irmão John, que faleceu no ano passado. Por fim, o show ainda trouxe mensagens de esperança na busca de um mundo mais justo, no qual cada ser humano possa entender a dor do outro, agindo com empatia e respeito a dignidade humana. Nesse clima de esperança o espetáculo foi finalizado, com os músicos deixando o palco tocando até o backstage, onde todos confraternizaram, em imagens transmitidas, ao vivo, pelos telões.
Podemos dizer que diante de um contexto de conflitos que ceifam a vida de milhares de inocentes, como a Guerra da Ucrânia e a Guerra na Faixa de Gaza, as críticas apresentadas por Roger Waters são extremamente necessárias. Os protestos contra a ascensão da extrema direita, contra o autoritarismo e a violência institucionalizada, contra as desigualdades e injustiças do sistema capitalista são fundamentais para que possamos refletir, enquanto humanidade, sobre o mundo que queremos viver. Nesse sentido, a turnê de despedida de Roger Waters apresenta a obra de toda uma vida dedicada a arte, a militância e a defesa da dignidade humana. O artista inicia o processo de despedida das turnês apresentando um legado generosamente oferecido a toda humanidade, convidando todos a uma reflexão profunda sobre sua própria existência e sobre a sociedade que construímos enquanto agentes históricos.
Certamente, a arte profundamente engajada de Roger Waters não permite a ninguém reagir com indiferença, despertando muita reflexão e até mesmo o incômodo em algumas pessoas ou veículos de comunicação. Como abordamos no início do texto, alguns artigos publicados em jornais tradicionais revelaram tal incômodo, o que parece revelar, também, características importantes da linha editorial destes jornais. Inevitavelmente, a crítica ao autoritarismo, ao fascismo e ao capitalismo, realizada por Waters, contraria aos interesses de grandes grupos econômicos, que defendem a manutenção do status quo do sistema político vigente. Dessa forma, na visão dos veículos de comunicação que representam os interesses da grande burguesia, as críticas de Roger Waters são excessivas ou até mesmo panfletárias. Talvez o passado de apoio a Ditadura Civil-Militar e a governos que flertaram com o autoritarismo ainda reverbere muito na atuação de alguns jornais, influenciando escolhas editoriais que procuram deslegitimar o engajamento político de artistas como o lendário ex-baixista do Pink Floyd. Possivelmente, para as minorias que controlam o grande capital, a opressão contra as minorias, a violência institucionalizada e a desigualdade sejam apenas aspectos inerentes e inevitáveis da vida em sociedade. Portanto, diante de tal cenário, o legado da obra de Roger Waters é indispensável para que possamos refletir sobre nossa existência individual e coletiva, pensando no mundo em que vivemos e no mundo em que queremos viver.
Notas
1 – www.estadao.com.br/cultura/musica/critica-roger-waters-se-despede-de-sp-em-show-deslumbrante-mas-com-excesso-de-militancia/
2 – www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/11/roger-waters-faz-em-sp-show-monumental-mas-com-parafernalia-visual.shtml
3 – Sid foi afastado precocemente da banda por problemas de saúde mental, falecendo em 2006.
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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo