Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mas é apenas arte…

Foto: Garapa Coletivo/Wikimedia Commons

Para Zé Celso Martinez Corrêa, in memoriam 

Em um mundo tomado por dogmatismos, onde a própria ciência parece se transformar, cada vez mais, em uma disputa de narrativas, e não mais orientada pelos ditames postos pela Modernidade (probabilidade, questionamento, repetição etc.), não é de se estranhar que a atividade artística seja, mais e mais, incompreendida. Será uma modalidade do marketing, um recurso ideológico, uma ilustração de ideias mais complexas, puro entretenimento? Não importa. O grave é o estrangulamento do espaço artístico em nossa cultura.

Dito de forma direta, sem qualquer intuito de polêmica: a arte é uma irrealidade. Ela não reproduz a vida, nem preserva o tempo, tampouco diz inequivocamente sobre um ocorrido: La Liberté guidant le Peuple de Delacroix, não é um espelho real da Revolução Francesa, Vidas Secas de Graciliano Ramos não é uma análise científica do Nordeste, 1900 de Bertolucci não é uma descrição fidedigna da Itália. Das várias incapacidades da arte, como, por exemplo, a de prever o futuro, a mais incontornável delas é a impossibilidade de dizer objetivamente sobre a coisa. Ela é pura fulguração e, enquanto tal, uma perdição.

Em um tempo governado por parâmetros vazios como o de progresso e o de eficiência – conceitos que, inclusive, perderam sua concepção original de produtividade (conceber, executar e alcançar um resultado) –, dentro deste contexto, a arte se vê limitada a uma utilidade frívola. Para que serve a arte? Deveríamos responder com a mesma violência prescrita por Gilles Deleuze quando perguntado da instrumentalidade da filosofia. Isso porque há uma maldade travestida de ingenuidade na pergunta. Perguntar sobre a serventia da arte já é depreciá-la, já é suspender sua importância como justificação ficcional da existência humana.

A arte não serve para nada. Ela é um inutensílio, como Manoel de Barros definiu, certa vez, a poesia. Ela é uma afronta ao estabelecido, um ataque ao utilitarismo, uma resistência à barbárie e um desarranjo das pretensões universais. É um apelo desesperado e, paradoxalmente, delicado, por um amor entre o desejo de afirmação do indivíduo e o tênue clamor à humanidade. Não comporta e nem é um conteúdo. É gratuita e indigesta ao mesmo tempo. Esta é a força da arte, refratária a qualquer apreensão objetiva e mestra em gerar uma saída para todos, ainda que impraticável.

Não por outro motivo, a arte se torna um constrangimento ao sistema em que vivemos, não importando qual seja. Avessa ao capitalismo (a despeito da remuneração do artista), indiferente ao sucesso (mesmo que gere fama), a arte é inessencial ao nosso tempo, enquanto um desconserto que evidencia a insensatez humana em querer ser um ente fabril.

A impostura da arte interdita a confusão atual entre seu resultado e a vida de cada ser humano. As ações e escolhas de uma pessoa não podem se equiparar a uma atividade artística. Somente em uma cultura tomada pelo resultado (ser mais conhecido, ganhar mais dinheiro, ter mais bens, escalonar ou perecer) que uma fábula pode ser, ao mesmo tempo, desprovida de respeito (arte reduzida ao divertimento) e julgada por sua suposta objetividade (arte reduzida à ideologia). A arte inventa, o indivíduo age. O interessante na arte não são os elementos pré-existentes (emoções, lugares, pessoas), mas o inesperado que cada obra realiza na disposição desses mesmos elementos.

Ignora-se, em nosso tempo, a desconcertante diferença entre criação e imitação. Quando tudo é vertido para o consumo, o chacoalhar típico da arte se transforme em um débil estímulo aos sentidos. De novo. E, então, novamente. Um mais e mais sem fim e sem sentido. Antes símbolo de um despertar, a arte vive seu formato mínimo como mais um meio de alienação existencial. É preferível discutir se devemos ou não olhar para cima do que adotar a terrível e reveladora postura de olhar para frente. Tudo, menos a realidade. Neste registro, pouco importa se uma piada é ou não racista; a arte já virou commodities, disputada com fervor e obscurantismo pelas forças ideológicas em voga, como capital de poder.

Esse apequenamento se espraiou por toda indústria cultural. Monteiro Lobato poderia ser silenciado pelas falas racistas de seus personagens. Mas um livro é um recurso monetário. Então reescreve-se sua arte e a coloca novamente nas prateleiras para ser comprada (antes utilizávamos o eletrochoque para normalizar os seres humanos, agora apenas reescrevemos suas palavras. Uma finesse moderna). Bukowski era um cafajeste, mas sua literatura imprescindível. Nesta tolice reinante (tolice no sentido conferido pela Antiguidade clássica, de uma irrestrita afetação por tudo o que nos é ofertado), mudam-se as traduções, impõe-se a escrita o parâmetro dominante, repetindo a manobra feita por Antoine Galland e seu expurgo de Mil e uma noites de tudo daquilo que fosse ofensivo ao cristianismo. Não é preciso salvar a obra de seu autor. O elementar é reconhecer a separação de um em relação ao outro, afirmar a autonomia da arte, não por um privilégio elitista, mas pela condição irrevogável de sua irrealidade. Qual será o próximo passo se continuarmos neste julgamento ubuesco? A repintura das telas de Rubens, para nos livrarmos de sua nudez despudorada? Por que a solidão de um porvir incalculável proveniente da arte nos é tão insuportável? Por que o escuro do mundo é mais temível do que a indigência humana?

O que está se perdendo não é o respeito, a civilidade, a dignidade ou mesmo a liberdade, mas, antes, a própria arte. Mas qual é o problema de se extinguir a fantasia? É apenas arte. Qual é a necessidade então de inviabilizar a criação artística em nome de uma correção de valores, se a arte é, essencialmente, mentira? O que a frágil luz trazida pela arte pode fazer contra as convicções arraigadas de uma cultura? Fecharemos nossos olhos para a vida em benefício de uma segurança ilusória? Que mal-entendido!

Contudo, esta contradição presente no desprezo pela arte pode nos lembrar de uma exuberância esquecida. Enquanto for possível a uma cultura opor-se à hipocrisia através de uma desmesura da lógica e da função, esta força vital, mesmo no ostracismo em que está condenada atualmente, quem sabe, volte a brilhar e a nos iluminar, graças a sua inutilidade e marginalidade imposta. Assim, a arte, com seus tentáculos fabulosos, poderá mover novamente os eixos do mundo.

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Marcelo S. Norberto é escritor e professor de filosofia.