Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A felicidade da crise

(Foto: Reprodução “Você não estava aqui” – Youtube)

É conhecida a máxima atribuída ao Barão de Rothschild, que causa explosões de entusiasmo nos empreendedores modernos: Buy when there’s blood in the streets, even if the blood is your own. Ela demonstra o traço mais intenso de nossa sociedade capitalista: negocie até a mãe, caso o lucro seja relevante. A maioria da população mundial não ocupa um lugar de destaque a ponto de poder perverter a vida para fazer fortuna. Contudo, o capitalismo impõe sua lógica até nos mais baixos estratos sociais. A nós, resta vender nossos corpos, nossos sonhos, nossa felicidade, para ter, em troca, uma frágil esperança de sobrevivência.

O escândalo desse sistema é normalmente sufocado pela exigência de garantir, a cada momento e contra todas as adversidades circunstanciais e estruturantes, a subsistência até o próximo dia, até a próxima crise ou até que a morte nos alcance. Todo o mercado de consumo irracional em que estamos inseridos, toda a propaganda massiva de incentivo ao prazer imediato que nos seduz, funcionam como arreios e cabrestos que nos sufocam em nossa irremediável capacidade de liberdade e de realização.

O recente filme de Ken Loach, Você não estava aqui (Sorry we missed you), é um grito de desespero no intuito de quebrar com esta cegueira que nos atinge e nos paralisa. O enredo gira em torno de Ricky e sua busca por trabalho em um serviço terceirizado de entregas de mercadorias. Toda sorte de humilhação social lhe é infringida sob o véu auspicioso do empreendedorismo. Seu chefe, no caso o agenciador Maloney, sintetiza a armadilha do processo capitalista na sarcástica frase: “Como tudo aqui, Ricky, a escolha é sua”. Junta-se a Ricky e seu negócio exaustivo de catorze horas diárias sem intervalos (que o obriga a urinar em uma garrafa plástica para manter os prazos das entregas em ordem), sua mulher Abby, cuidadora de idosos com salário degradante e desproporcional à sua dedicação, Seb, filho adolescente que deseja romper com tudo (escola, trabalho, responsabilidade etc.) para grafitar, e Liza, filha mais nova e angustiada com o desmantelamento de sua família. E, contra toda a aparência, não se trata nem de uma experiência artística do realismo, nem de um simples filme de militância. Loach nos oferece, ao contrário, uma grande alegoria cinematográfica.

A cada momento, espera-se uma desgraça que ilustre a opressão vivenciada pelos personagens, um acontecimento que exemplifique o massacre ocorrido pela vida miserável que os atores encenam, um suicídio, um acidente fatal, uma violência inominável que permita ao espectador expor sua raiva e revolta em uma catarse redentora. Loach não é conivente com tal fuga. Não é a história filmada que é trágica, mas nossa realidade. E, por isso, Loach não pode nos socorrer em nome de um prazer burguês da transfiguração dos sentimentos estéticos. Sua ambição é maior, ou, ao menos, sua revolta com esse estado de coisas não permite uma evasão estéril. O que Loach nos mostra é a superação da antiga exploração de rebanho pela nova opressão do extermínio. Se, há cinquenta anos, um operário podia opor à violência capitalista as leis trabalhistas e a atuação dos sindicatos, hoje, no tempo da uberização, o único limite que nos resta é o da falência ou da morte. E, para que tal realidade possa ser reconhecida, é preciso um distanciamento, um recuo da ilusória percepção de oportunidade que o capitalismo atual tenta fabricar. O suposto realismo do filme (uma filmagem direta, sem apelos dramáticos ou tragédias comoventes) é um jogo estético para que seja possível enxergar a perda de liberdade e de vida neste novo modelo econômico. Por isso, também, Você não estava aqui não é um filme militante, pois seu ânimo não é de explicar a realidade, mas, antes, de expor o escândalo em que vivemos.

Só então podemos ver as duas grandes alegorias que são construídas no filme. Uma é da estrutura que organiza nossa sociedade a partir de uma cultura capitalista. O capitalismo contemporâneo não é um instrumento de ordem econômica ou uma política de organização social; ele é a cultura que nos sustenta e nos forma. Assim, não há uma experiência de fora dessa organização: do dono da empresa de entregas aos entregadores terceirizados, dos clientes em busca de suporte aos seus cuidadores, todos orbitam segundo as mesmas leis de exploração. É justamente a capacidade de ser explorado que determina os limites do sistema social. Assim, somente escapam da tragédia capitalista aqueles são entregues à tragédia existencial: os idosos, os doentes e a criança (improdutivos e inativos). Neles, a vida e o amor ainda reverberam no filme. Logo, ou se transforma a sociedade ou a opção individual será infértil e melancólica.

A outra alegoria é a que expressa o otimismo típico de Ken Loach e expõe a força para que esse cineasta consagrado continue a realizar sua obra. Se tomássemos o filme como um mero retrato da realidade, nos restaria a saída terminal do niilismo, com o fim da possibilidade de resistência, do confronto e consequente recusa dessa exploração e extermínio. O exemplo desse acanhamento interpretativo seria ver na cena de Abby, ligando para familiares e tentando organizar a vida de todos em meio a um dia estafante de trabalho, um beco sem saída e o reconhecimento da única atitude possível: esperar o fim de tudo. Mas a sofisticação de Loach e de seu companheiro de jornada, o roteirista Paul Laverty, é abandonar a fábula humanista de que a redenção advém do apogeu, transformado a cena de Abby em um trampolim dramático para a verdade do filme. Para Loach, a esperança de mudança, depois do fracasso de todas as crenças redentoras (Deus, ciência, história), só é possível nascer do desespero, de uma opressão sem paralelos em termos comunitários. Essa possibilidade é encontrada no filme na figura da família. Não na ideia de família e suas conhecidas interpretações psicanalíticas, sociológicas ou religiosas: nada mais estranho ao filme. Mas na família como organismo que encarna o humano. Não se trata separadamente de um pai trabalhador, de uma mãe abnegada, de um adolescente revoltado e uma criança doce, mas de uma experiência humana em si que, a despeito da exploração e por causa da opressão, ainda subsiste e é capaz de enxergar a injustiça e revolucioná-la.

Em 1944, logo após a libertação de Paris, Jean-Paul Sartre publica um texto em que tenta fornecer um sentido aos franceses, resistentes ou não, durante a ocupação nazista. Em A república do silêncio, Sartre mostra que, na iminência da morte, quando cada atitude, fosse ela uma ação, fosse ela um silêncio, poderia resultar em uma execução, a liberdade encontra sua expressão mais visível. Se cada tomada de posição podia ser a última, o ser humano tendia a expressar sua liberdade da forma mais genuína possível, sintetizada na impactante expressão “nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã”. A felicidade da crise, pensada por Sartre e filmada por Loach, está não na negação da opressão, mas na possibilidade de um confronto mais violento com a realidade e consigo mesmo. A felicidade, estando tão distante do prazer e de seu caráter alienador, prazer este fugaz como um estado de humor (que Stendhal chamava de “felicidade louca”), nos aponta para outra experiência, a do acaso. É a vivência intransponível da falta de sentido (afinal, a opressão não encontra justificativa que não na injustiça), é a constatação dolorosa de que não há uma razão maior para o sofrimento que não a da cultura que comungamos, que nos anima a pensar em uma mudança que transforme a realidade.

Quarenta anos depois de sua morte, o pensamento de Sartre ainda é uma força vital capaz de encontrar afinidades com experiências contemporâneas, como a de Loach e seu filme. E, neste momento de incerteza e sofrimento causados pela epidemia, cabe a nós, sobreviventes do extermínio, cientes da responsabilidade desta felicidade possível, reconhecermos a oportunidade de enxergar nossa época. (Dedico o texto ao meu amigo Fabio Caprio Leite de Castro.)

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Marcelo S. Norberto é professor e pesquisador do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Autor de O drama da ambiguidade – a questão moral em O Ser e o Nada (Editora Loyola, 2017). Atua nas áreas de Filosofia Francesa Contemporânea, Ética e Filosofia Política.