No país de Bolsonaro não terá importância o maior acontecimento cultural do Brasil depois de quase dois anos de pandemia: a abertura do 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O Brasil dos brasileiros que amam cultura vibra com a abertura virtual e presencial em 15 espaços da cidade, do dia 20 de outubro a 3 de novembro. No país paralelo de Bolsonaro o mundo não importa, mas para nós, assistir 264 títulos de 50 países que raramente enviam sua produção para cá é o presente dos céus. O ingresso de cada filme sai por R$12,00; o pacote, de R$ 57,00 a R$ 150,00 na plataforma www.mostraplay.mostra.org. E um passeio pelo site da 45ª Mostra é o encontro de um paraíso perdido — agradecimentos expressos à Renata de Almeida e aos patrocinadores que não incluem a secretaria-de-qualquer-coisa de Mário Malhação Frias. Pela amostra, já dá para sentir quanta falta faz esse produto sabotado desde que o capitão e sua trupe assumiram o poder: Cultura.
A amostra é o filme que ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim em março deste ano, Má Sorte ou Pornô Acidental, do romeno considerado um dos melhores cineastas experimentais, Radu Jude. Original, dividido em três partes, o filme começa com um vídeo similar aos canais pornô, mas no dia seguinte revela que foi vazado de uma noite de sexo entre marido e mulher, com o detalhe de a mulher ser professora de uma escola de alto nível para adolescentes.
Quando parece que tudo terminará no julgamento da professora entre os diretores da escola e os pais dos alunos de Emilia Celibiu, o espectador é surpreendido pela segunda parte. Parece não ter nada a ver com o filme, mas pouco a pouco percebe-se a conexão. Relaciona todas as pornografias da sociedade, da economia e da política passando pelo colonialismo, os abusos e a corrupção do Secretário-geral do Partido Comunista, Nicolae Ceaucescu, de 1965 a 1989, quando foi derrubado e morto junto com a mulher. Cita a pobreza do país em relação à Europa rica, as prisioneiras políticas, dá um flash na História que desde sempre lega um retrato um tanto sombrio da vida. Sem maiores explicações.
O experimento de Radu Jude retoma na terceira parte o julgamento da professora pelos pais dos alunos e aí fica claro onde está verdadeira pornografia na sociedade. A professora está sendo julgada por ser taxada de judia, comunista, a favor de sexo entre homossexuais, por ensinar aos alunos os reais abusos de seu país na Segunda Guerra, quando romenos mataram judeus e ciganos. Emilia Celibiu é vítima dos costumes e da crueldade dos pensamentos preconceituosos. Sexo é apenas uma parte da hipocrisia das boas famílias.
O final é surpreendente. Pelo meio do caminho, sem citar as fontes Jude lança mão de 25 pensadores como Walter Benjamin, Hannah Arendt, Ambrose Bierce, Brecht, Paul Celan, Umberto Eco, Kundera, Kracauer, Malraux, Sartre, Todorov, Virginia Wolf. E deixa a mensagem; o filme seria cômico se não fosse sério, porque a vida, como nas peças de Shakespeare, não passa de pornô, misto de tragédia e comédia.
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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).