O governo mais ideológico de todos os tempos gosta de se gabar que vai acabar com a ideologia nas escolas, nas universidades e no próprio governo, cujos integrantes foram convocados apenas mediante mérito “técnico”. Apontar o dedo sujo de fanatismo e obscurantismo para quem o questiona e resumir sua tática em apenas “jogar pra sua torcida” é modus operandi do discurso bolsonarista. Mas quem há de vigiar aqueles que se dizem nossos vigilantes?
A indicação ao Oscar do documentário Democracia em vertigem, de Petra Costa, feriu o orgulho da ultradireita censória. Tentando dar alguma relevância às suas questiúnculas – como a de que, se o filme fosse contra o PT, não seria indicado, segundo Eduardo Bolsonaro; ou de que é simplesmente uma porcaria, como disse Bolsonaro pai (este amante da democracia, que já afirmou que seu filho, Carlos, tinha razão ao dizer que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”, num tuíte em setembro de 2019) -, os Bolsonaro reduzem o debate monoliticamente. O ressentimento – contido durante anos – da arte e dos artistas explode em defesa de uma idealizada ditadura, ansiada pela direita. Essa mágoa vem do ódio por não se sentir, a direita, representada pelas artes por tanto tempo.
Foi no dia 14 de janeiro que a galeria francesa Sympa anunciou uma exposição de Britney Spears, a cantora pop, compartilhando um vídeo de 2017 em que ela pinta uma pequena tela com flores. Parece muito mais uma dessas fofocas, pura estratégia de marketing, para que caiamos no ímpeto de criticar o trabalho óbvio de Britney. A dimensão do desconhecimento dos Bolsonaro em relação à arte faz a pintura de Britney, fã assumida de Romero Britto, parecer até interessante sob certo aspecto. Qual o poder do clichê? Itamar Assumpção já alertava, sagaz, em uma de suas músicas: chavão abre porta grande. O clichê pode ser muito eficaz.
Romero Britto é, na arte, um assunto “buraco negro”, desses que parecem sugar para sempre nossas forças. Mas também acho que ele e seu trabalho podem criar (dependendo das forças e cenários em que estejam incluídos) uma discussão muito interessante. Romero ignorou os meios tradicionais de exposição, como os museus e galerias; foi um sujeito que aproveitou oportunidades de um meio pop e de mercado; e faz arte, assim como Britney, altamente comerciável e pop. O reconhecimento público de sua legitimidade não passou pelas instituições, mas pelo contato direto com as celebridades e o gosto do povo. Fica, então, a questão: como problematizar sem ser dicotômico (criticar ferrenhamente a arte pop versus criticar ferrenhamente a arte contemporânea)? Como fazer essa discussão em uma época em que o empreendedorismo de si mesmo exalta o self-made man, a uberização do trabalho e nos anuncia uma sociedade do cansaço, onde o pavimento do desemprego estrutural parece cimentar tudo? Como ter um pensamento criativo tendo que voltar sempre à centralidade de questões como a defesa dos direitos humanos e as conquistas civis constitucionais?
Bolsonaro zomba das regras, das convenções sociais, das formalidades, e por isso excita aqueles que têm tantas normas para cumprir. Grande parte do jornalismo que o replica tenta normalizar o que ele fala, mostrando ora uma indignaçãozinha aqui, outra ali, para manter o seu papel convencional. Mas diante dessa conjuntura, da geopolítica, das iminentes guerras, como excitar a necessidade de sublevação? Algumas leituras, em parte petistas, dizem que 2013 levou ao golpe. Quem vai ter coragem agora de ser insurreto, quando pode haver a possibilidade de vir um outro Bolsonaro, mais cruel que o atual, depois que começarmos a protestar pela diminuição de uma tarifa de ônibus? Só nos resta, afinal, o desejo de uma personalidade salvacionista?
A recusa das pluralidades é marca totalitária. O acolhimento das especificidades é marca da arte. Não digo da arte institucionalizada, mas do conceito arte, em geral. Pode acolher Britney Spears como cantora ou artista plástica, Romero Britto como comerciante ou inventor de gênero, Petra Costa como cineasta ou ativista. Entretanto, assim como na falta de perspectiva política, a busca de salvação por legitimidades várias pode ser muito cruel. Flavio Bolsonaro, em março de 2018, disse que a Netflix o teria procurado para uma possível realização de um documentário sobre seu pai, e a esquerda adorou quando o perfil no Twitter da Netflix Brasil respondeu: “Você está louca, querida”. O que ocorreu, mesmo, foi a produção da Netflix de Democracia em vertigem, filme que narra a ascensão e queda de Dilma Rousseff. Os ultraconservadores, nada felizes, atacaram recentemente a Netflix pelo especial de Natal do Porta dos Fundos. Mas é preciso lembrar que, no catálogo do serviço de streaming, há também os filmes Nada a perder e Nada a perder 2, que contam juntos a história de Edir Macedo, o famoso bispo da Igreja Universal. Há também, no catálogo, a produção Os dez mandamentos, da Record (emissora do bispo). Então, como se alinhar à Netflix, se tudo o que ela faz é sob a perspectiva de conseguir fechar bons negócios na área do entretenimento? Negócios, aliás, que vão bem tanto para ela quanto para Edir Macedo, que é o líder religioso mais rico do país, com um patrimônio de R$ 2 bilhões, segundo a revista Forbes, seguido de outros líderes neopentecostais. Macedo, que prega a teologia da prosperidade, chegou a dizer num vídeo de 2018, mas que viralizou esses dias: “eu não creio que o Espírito Santo queira palmas, ele quer que você nos ajude a pagar nossas contas”. Também foi ele o autor de uma fala gravada em 1992, em que aparece ensinando técnicas de arrecadação de dízimo; segundo ele, o fiel “ou dá, ou desce”. E Bolsonaro é um grande aliado do bispo, recentemente anunciando que pretende subsidiar a conta de luz das igrejas.
Assim, quando a vitória pelo empresarialismo de si mesmo, sustentada religiosamente, não ocorre, como direcionar o ressentimento? Como liberar todo esse ódio sem uma direção apropriada? Resta direcionar esta insatisfação e revolta para a esquerda e suas pautas progressistas – contra a homofobia, a misoginia, a xenofobia, o racismo etc. -, com a devida benção do governo bolsonarista.
“O cuidado de si, a partir de práticas da liberdade, é uma forma de você se contrapor a esse poder. Lutar contra o empresário de si mesmo, lutar contra o indivíduo competitivo, é uma maneira de você se contrapor a esta forma de produção de subjetividade pelo capitalismo neoliberal”, diz Margareth Rago, na palestra “Foucault: a filosofia como modo de vida”. Como artista, sempre detestei as competições nas quais me metia por ingenuidade, achando que não havia outro jeito. Base do capitalismo, a competição pode acirrar ânimos, pode fazer parecer que a vida tem mais sal, que se pode viver grandes emoções com grandes vitórias. Mas ela também imobiliza, faz desconfiar do outro, desencadeia inimizades. É possível que o documentário de Petra Costa ganhe o Oscar, mas não acredito que isso possa ser uma vitória da democracia ou do Estado de direito, como dizem alguns políticos mais empolgados. Hollywood não tem problemas com filmes políticos, o que importa é aquecer o mercado. Então, que legitimidade estamos procurando, afinal? A do mercado? De Hollywood? Dos Estados Unidos? Não seria muito interessante se pudéssemos falar do filme sem a possível carteirada que ele pode dar com seu prêmio? Não quero dizer com isso que devemos questionar o seu mérito, mas que estamos nos apegando para encontrar um fio de satisfação. Quando Gabigol, o jogador do Flamengo, pareceu desdenhar, em um vídeo, do governador do Rio, Wilson Witzel, setores da esquerda comemoraram. Depois, uma foto do próprio Gabigol com o governador surgiu, e não dava mais para sustentar com tanto entusiasmo o pretenso desdém anterior.
Democracia em vertigem pode ter uma indicação ao Oscar, enquanto até poucos dias atrás o filme sobre Marighella, dirigido por Wagner Moura, ainda não tinha data de lançamento no Brasil, por impedimentos burocráticos. Como comemorar diante disso? Estamos falando apenas de grandes produções. E quanto aos curtas e médias-metragens que não têm espaço e nem possibilidade de virar grandes produções, com patrocínios, alta tecnologia, grande equipe experiente? Como tratamos esses trabalhos? São menores por não terem grande visibilidade? Nos atentamos mesmo à qualidade das ideias, dos debates, da criatividade presente em um trabalho artístico? Ou uma obra específica chama a nossa atenção apenas porque usamos como muleta o gosto de um crítico de cinema, de um amigo, de uma coluna de jornal, e isso nos dá a sensação de que já gostamos daquilo antes de ver e que o ritual da compra do bilhete, da entrada na sala de cinema, da espera num local climatizado, nos dá a sensação de que nosso gosto está em consonância com um ambiente aceitável socialmente, reafirmando a hegemonia comercial dos meios de comunicação de massa?
E, como uma questão leva a outra, relembro: como fazer uma discussão mais profunda sobre arte sem cair no academicismo, na setorização hermética dos sistemas artísticos, que já são tão fechados por si mesmos?
Nos anos 1960, um grupo de artistas que também rejeitava as instituições fazia a chamada antiarte. Não antiarte no sentido ultraconservador, de ser contra a arte (no estilo “não vi e não gostei”, de Bolsonaro), mas sim daqueles que buscavam expressões do pensamento crítico, que rejeitavam valores estéticos já consolidados, experimentando novas relações e questionando a noção de contemplação estática de um trabalho. A arte deveria entrar no corpo, ser arte-vida, o mundo era o museu, segundo as ideias de Hélio Oiticica. Os que se identificavam com a antiarte queriam que o espectador participasse ativamente daqueles trabalhos, que tocassem objetos, que vestissem as capas, que penetrassem em ambientes, que tivessem na ação sensorial ampla sua participação e ativação essencial. No final das contas, a antiarte podia ser lida como uma busca por uma essência perdida da arte, uma busca pelo afeto do espectador, que participava, junto com o artista, de uma mudança comportamental.
Que possamos encarar Democracia em vertigem não apenas no sentido de torcida por uma premiação no Oscar, (afinal, sua feitura em si já é uma grande vitória), mas como um trabalho de arte que nos remeta à ação.
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Alex Frechette é artista plástico e autor de Copa pra quem? Olimpíadas pra quem? Arte e megaeventos esportivos no Rio de Janeiro – Contranarrativas na cidade turística.