Nunca vi boa amizade nascer em leiteria, dizia Vinicius de Moraes, e não é por acaso que virou bar a casa onde Paulo e Chico Caruso nasceram na rua Mourato Coelho, esquina com a Wizard, em São Paulo. Gêmeos idênticos, univitelinos, ambos arquitetos, cartunistas e músicos, trocavam namoradas e assinavam provas um pelo outro sem que ninguém percebesse. Paulo dizia que não poderiam suportar se espelhar tão de perto a vida toda, e Chico se mudou para o Rio. Sozinho em Sampa, Paulo ficou com todos os bares da Vila Madalena só para ele.
Neste fim de semana, 45 dias depois da sua morte, o ícone do cartum brasileiro, dublê de ótimo músico, ganhou um Palco Paulo Caruso. Um luxo. Fica no Pira Grill da rua Wizard, 161, que foi também a sua “casa”, onde 150 fãs, órfãos do elegante e brilhante Paulo, foram se despedir do amigo onde ele certamente estaria – no bar, claro. Servindo as bebidas, o barman Passarinho, que foi seu padrinho de casamento, junto com os colegas e ilustradores Jaguar e Alcy Linares. Organizando a homenagem, os donos do Pyra Bar, Vera e Pedro Costa, que é músico também – no seu cd “Cancioneiro”, Paulo canta “O Dia Que eu Aprender”.
Fernando Barros (violão e contrabaixo), trouxe seu trio Tabarana (Fernando Mumu, trombone, Denilson Oliveira, percussão) para desta vez tocar sem Paulo, seu parceiro há mais de 20 anos. Alguns amigos discursaram, outros cantaram, como as gêmeas univitelinas Celia e Celma Mazzei, Alcy Linares e Guilherme Zachi.
Mas quem ganhou a noite foi Chico Caruso, que já chegou do Rio cantando para Paulo a música “Caruso”, emocionando quando soltou seu vozeirão à capela “Ti voglio bene assai, ma tanto, tanto bene, assai”. Depois, engatando a pândega tradição dos irmãos no palco, soltou três Lupicínios, “Pederasta” (de Ruy Fernando Barbosa), e se despediu cantando, da autoria de Paulo, “500 Anos de Corrupção no Brasil”: “ …aprendi a roubar, sem sequer me envergonhar… até o ano 3000, meus problemas resolvi…”
Paulo fez um milhão de amigos, virou personagem, foi deixando sua marca por onde passava. No bar Pasquim da rua Aspicuelta, por exemplo, não podia entrar que os músicos anunciavam, senha para jovens e marmanjos pedirem canja. E Paulo dava, sentando-se ao piano, ou tocando violão e cantando, diante da enorme parede principal que ostenta as caricaturas que fez da nata da MPB. Nos outros bares do pedaço, é só entrar e procurar que encontra, Paulo deixou um traço ali.
Por uma dessas injustiças do destino, Paulo morreu mês passado, dia 5, aos 73 anos, em decorrência de um câncer. E como se sabe, o Brasil esquece seus ícones. Mesmo que, como Paulo, tenha deixado rastro na imprensa trabalhando no jornal alternativo Pasquim durante a ditatura e depois na Careta, Senhor, Isto É, Jornal do Brasil, Época, Folha de S. Paulo, Veja, fora as revistas especializadas em humor. E as charges que toda semana criava para todo mundo ver no Roda Vida da TV Cultura, desde 1986.
Chico foi embora para o Rio, onde há quase 40 anos é chargista da primeira página do jornal O Globo. Mas falava com Paulo todos os dias, a ponto de Eliana, mulher de Chico, dizer que tinha se casado com dois. Os gêmeos desenvolviam uma carreira musical peculiar em espetáculos com paródias sobre a política nacional. Muitos viraram discos: Prá Seu Governo (1998), E La Nave Va (2001), 30 Anos de Democracia –Que País é Esse (2016). Ambos publicaram livros. Paulo tem pelo menos cinco, “As Origens do Capitão Bandeira” (1983), “Bar Brasil na Nova República” (1986), “Assim Caminha a Modernidade” (1992), “O Circo do Poder” (1994). E fez uma homenagem especial aos 450 anos da sua cidade, “São Paulo por Paulo Caruso”.
Agora, com o Palco Paulo Caruso no Pira Grill, um dos maiores cartunistas deste país não pode mais ser esquecido, ficou imortal.
Norma Couri é jornalista.