Tive a oportunidade de acompanhar, presencialmente, em Assunção, no Paraguai, de 2 a 7 de dezembro de 2024, a 19ª Reunião do Comitê Intergovernamental da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ocasião em que foi feita a seleção de novos bens integrantes das listas de patrimônios culturais imateriais da humanidade.
Foi uma experiência muito interessante, que consistiu na possibilidade de interagir com pessoas de todas as partes do planeta, muitas das quais com roupas tradicionais dos seus países, o que gerava uma atmosfera multicultural em elevadíssimo nível.
O curioso é que essas pessoas, falantes de diferentes línguas, com específicas realidades de vida, adoradoras de divindades as mais diversas, encontraram um elemento que as aproxima: o compartilhamento de atividades que dão sentido ao cotidiano dos seres humanos, conforme ficará evidente um pouco mais adiante.
De fato, fui para o evento com o espírito bem preparado por Pier Luigi Petrillo (Itália) e Evrim Ölçer (Turquia), pessoas que na semana anterior tive a honra de recepcionar no Brasil, onde foram palestrantes do XIII Encontro Internacional de Direitos Culturais, realizado pela Universidade de Fortaleza (Unifor). O italiano é ex-presidente do corpo técnico que analisa as candidaturas, e a turca é a atual vice-presidente do mencionado órgão, tendo sido a pessoa que anunciou o parecer favorável à inscrição dos métodos tradicionais de fabricação do Queijo Minas, no Estado natal de Tiradentes.
Em Fortaleza, palestrando na Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, Petrillo fez ver que a Itália, um país cujo território se aproxima ao do Estado do Maranhão e com uma população de aproximadamente um quarto da brasileira, possui, na lista representativa, 20 elementos, enquanto o Brasil tem apenas sete. Destacou que a diferença não resulta de uma comparação entre as riquezas culturais dos dois países, mas de estratégias políticas na apresentação de candidaturas.
Para que a informação fosse compreendida, o professor italiano esclareceu que há três caminhos de postulação, a saber: candidaturas singulares, para bens peculiares ao país; candidatura coletivas, para elementos comuns a mais de um país (no corrente ano, o uso da henna foi apresentado por 16 países); candidaturas por adesão a bens já reconhecidos em favor de outros países (a arte da Falcoaria, originalmente de seis países, por adesões subsequentes já conta com 24).
O Brasil, até o momento, só fez uso de candidaturas singulares, que são as mais difíceis, pois são numericamente limitadas, ou seja, no intervalo especificado pela Unesco, só pode haver uma candidatura por país. Os outros dois tipos são livres e não concorrem com o primeiro tipo de candidatura.
Disto decorre que o Brasil poderia ter mais bens inscritos na lista representativa da Unesco se, por exemplo, tivesse aderido à candidatura do ofício das parteiras, que em 2023 foi reconhecido como uma prática cultural da Eslovênia, Togo, Alemanha, Nigéria, Chipre, Colômbia, Cazaquistão e Luxemburgo, sendo que a atividade faz parte da nossa realidade cultural, sobretudo fora dos centros urbanos.
No que concerne à possibilidade de patrimônios já reconhecidos em favor de outros países, mesmo sem proximidade fronteiriça, diplomática ou comercial, isso é importante por assinalar que a humanidade possui elementos comuns, onde quer que esteja.
Voltando esta premissa à realidade do Ceará, em palestra que proferiu no Museu do Humor Cearense, a professora Evrim Ölçer fez um apanhado de patrimônios culturais reconhecidos que envolvem o humor, com destaque para “As práticas e Expressões de Piadas como Elemento de Relação Social”, reconhecidas em favor do Niger, descritas, no site da Unesco, como “uma forma de uma provocação lúdica”.
É exatamente isso o que se pratica no âmbito da sociedade cearense (e quiçá de boa parte do Nordeste do Brasil): as pessoas se comunicam fazendo uso de uma espécie de falsa depreciação dos interlocutores, conhecida pelo verbo “mangar”; fazem isso como uma forma de interação e comunicação afetiva, em qualquer que seja o ambiente, algo que se replica no país africano, em que as “brincadeira são praticadas em locais públicos, nos campos, escritórios, mercados, fontes de água e em casa, todos os dias, bem como em ocasiões especiais, como casamentos, batizados, cerimônias e funerais, transações comerciais e eventos culturais e de entretenimento”.
Assim, o Brasil, por sua autarquia responsável pelo patrimônio cultural, o Iphan, tem toda condição de ampliar significativamente a sua presença na lista de patrimônios culturais imateriais da humanidade se passar a adotar a política de compreensão e compartilhamento cultural, algo que em nada diminui o valor da herança cultural brasileira. Ao contrário, pode colocá-la em função dos grandes objetivos dos direitos culturais, que são a dignidade, o desenvolvimento e a paz.
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Humberto Cunha Filho é professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, com mestrado e doutorado pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). É Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais e autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP).