Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O espírito de Drummond e a Casa de Rui

(Foto: Wikimedia)


Publicado originalmente no site da ABI
As demissões da semana passada no Centro de Pesquisa da Casa de Rui Barbosa nos remetem ao poema de Bertold Brecht:
“Primeiro levaram os negros/ mas não me importei com isso/ Eu não era negro./ Em seguida levaram alguns operários/ Mas não me importei com isso/ Eu não era operário./ Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso/ Eu não era miserável./ Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho meu emprego/ Também não me importei./ Agora estão me levando/ Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém/ Ninguém se importa comigo”.
Estamos assistindo ao desmonte da Funarte, da Ancine, da Biblioteca Nacional, à extinção do Ministério da Cultura, que pegou carona no Ministério do Turismo. E sabemos do desprezo do secretário Roberto Alvim, da Cultura, por Fernanda Montenegro; ouvimos a alegação do dirigente Sergio Camargo, da Fundação Palmares, de que a escravidão acabou sendo benéfica para os descendentes negros; vemos o ministro Abraham Weintraub, da Educação, chamar Kafka de kafta, escrever “paralisação” com “z” e “impressionante” com “c”.
Na Casa de Rui Barbosa, ficaram no ar os seminários sobre imprensa e culturas urbanas, o mestrado profissionalizante que existia há três anos, um importante centro de refugiados que contava com doze bolsistas e a cadeira Sergio Vieira de Mello, as palestras do historiador francês Roger Chartier ou do músico paulista José Miguel Wisnik, os encontros científicos e os cursos, o elo acadêmico com universidades brasileiras e estrangeiras, as pesquisas sobre a Velha República. Exterminar o núcleo duro do Centro de Informação e Memória da Casa de Rui Barbosa equivale a descarnar um trabalho sério da cultura brasileira que produziu, entre outras preciosidades, um Dicionário de Português Medieval. Mas não é só isso.
A Casa de Rui Barbosa abriga o “Museu: Fantasia?” descrito no artigo de Carlos Drummond de Andrade para o Jornal do Brasil, em 11 de julho de 1972: “velha fantasia deste colunista… um museu de literatura”. Drummond continuava, há 47 anos:
“meu sonho é ver reunidos, em sala bem arrumada, o manuscrito de Iracema, o tinteiro de Alphonsus de Guimarães, o caderno de exercício de alemão de Machado de Assis, e uma lembrança de Euclides e outra lembrança de Lima Barreto e mais isso ou aquilo que nos restitua a presença, o esforço criador, a esquecida memória dos que, no Brasil, praticaram o ofício da palavra”.
Cinco meses depois, em dezembro de 1972, uma exposição comemorativa do IV Centenário dos Lusíadas inaugurava o Arquivo-Museu de Literatura na Casa de Rui Barbosa. A Casa havia sido fundada em 1924, no casarão da rua São Clemente que mantinha os 23 mil títulos da biblioteca particular do seu dono. Incluía uma fantástica coleção de ciência política e mantinha nos móveis “o modo de vida” entre 1849 e 1923, época em que Rui viveu.
Esta semana, as famílias depositárias dos acervos de Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Pedro Nava, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Cacaso, Álvaro Moreyra, Caio Fernando Abreu e muitos outros, incluindo os herdeiros de Carlos Drummond de Andrade, ficaram temerosas com o rumo do tesouro que é a alma da cultura brasileira. Como eram a alma da Casa o Centro de Pesquisa, cujo diretor, Antônio Herculano Lopes, e quatro pesquisadores – a crítica literária Flora Sussekind, o cientista político Charles Gomes, a jornalista Joëlle Rouchou e o sociólogo José Almino de Alencar – foram destituídos de seus cargos. Souberam da exoneração por um amigo que leu a notícia no Diário Oficial na quarta feira, 8 de janeiro.
Ao ver seu museu criado e dirigido por Plínio Doyle, que manteve durante anos, em sua casa, os saraus literários conhecidos como “sabadoyles”, Drummond escreveu: ”poucas pessoas souberam (ou perceberam) que alguma coisa de novo aconteceu numa mansão da rua São Clemente”…
Esta semana, quantos brasileiros souberam, ou perceberam, o que aconteceu com a cultura? “Um gesto de violência”, diz José Almino, que presidiu a Casa de 2003 a 2011.
A nova presidente, Letícia Dornelles, na Casa desde outubro, afilhada política do pastor Marco Feliciano, colaborou em roteiros de novelas como Minha vida é uma novela, do SBT, trabalhou no Fantástico e alega ter curso de gestora.
Gere um orçamento de R$ 6 milhões, mas declarou que “não serve para nada”. Diz que conseguiu R$ 200 mil para consertar o teto do museu, R$ 1,8 milhão para a reforma elétrica e R$ 400 mil para prevenir incêndios. E, ao jornal O Globo, declarou que alguns trabalhadores não apareciam para trabalhar, dizendo-se incomodada com tantos professores ali.
Mas os pesquisadores e o chefe da pesquisa, Herculano, explicam o que todo intelectual sabe: este não é um trabalho de bater ponto, trabalha-se muito mais do que as quarenta horas semanais com participações na vida acadêmica, pareceres para artigos científicos, estudos paralelos, correções de trabalhos em casa. E lastimam a falta de abertura de concursos para compor os quadros da instituição. “E este governo não tem quadros”.
Segundo José Almino, a presidente não tem perfil adequado para o cargo. “Não tem qualificação acadêmica e foi colocada ali obedecendo à desconfiança que o governo tem dos intelectuais. Nosso afastamento foi ideológico, porque fomentamos uma área que incomoda, a da ciência e cultura”.
Quando viu seu museu de pé, Drummond escreveu: “dá gosto ir à Casa de Rui Barbosa, mansão de paz em que os verdes do parque emolduram um centro de estudos e pesquisa”. José Almino lastima a colocação, pela nova presidente, de um PapaI Noel nos jardins e a tentativa, felizmente frustrada, de trazer uma astróloga para fazer uma palestra. “A Casa foi tomada por ideólogos do governo. O momento é de atenção, porque a Casa recebe doações importantes e desenvolve há anos um trabalho altamente qualificado”.
Uma carta aberta contra a exoneração já havia recolhido, em dois dias, 13 mil assinaturas. Uma carta assinada por dezessete pesquisadores dirigida à presidente, Letícia Dornelles, relata as preocupações e dúvidas em relação ao futuro da Fundação Casa de Rui Barbosa, em particular às pesquisas em cultura e humanidades. Perguntam: “deveremos temer, também nesta Casa, a introdução de um clima de obscurantismo e perseguição intelectual?”
Esta semana estréia o filme do canadense Denis Côté, Antologia da cidade fantasma, com seres estranhos que começam a aparecer em uma cidade que se tornou nebulosa.
Côté explica que a ascensão do populismo na mídia, a crise migratória e a relutância em se abrir para outras pessoas afeta o tecido social; as pessoas começam a viver com tamanha indiferença que o sobrenatural pode se infiltrar. Ele explica que os monstros do filme simbolizam a humanidade perdida e os seres estranhos são os mortos que retornam para alertar os vivos. “Se você não fizer nada com esta memória, esta história e este território, nós o tomaremos de volta”. Cuidado. Como Brecht escreveu no poema, “agora estão me levando, mas já é tarde.” E, desde a semana passada, o espírito de Drummond deve estar rondando o patrimônio da Casa, prestes a tomá-lo de volta.
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Norma Couri é jornalista.