Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O garoto mais bonito do mundo

Foto: Reprodução/Morte em Veneza

Quem viu Morte em Veneza não esquece a atração perturbadora e platônica do compositor de meia idade Gustav von Aschenbach pelo garoto Tadzio — por quem homens e mulheres assistindo ao filme também se apaixonam. Tadzio é lindo, ideal da beleza masculina, e o diretor Luchino Visconti foi atrás disso quando percorreu Hungria, Polônia, Rússia atrás do garoto polaco descrito no livro de mesmo título de Thomas Mann em 1912. Visconti encontra Tadzio na Suécia, levado pela avó para realizar os testes. Pede que o garoto fique seminu para escolher direito e não se importa com a timidez que provoca. Achou a beleza perfeita, era o que importava. Não desgruda dele até terminar a rodagem e lançar o filme em 1971, protegendo-o, avisando à equipe ávida de olhares, “ninguém toca nele”.

Cinquenta anos depois, dois diretores suecos, Kristina Lindström e Kristian Petri, contam o que aconteceu a Björn Andrésen depois do estouro de Morte em Veneza no mundo nos anos 70. O lendário Tadzio era levado como troféu a bares gays, boates estranhas, tournés como a de Tokyo onde gravou um disco e posou para propagandas. Na época do filme, Björn tinha 15 anos e a avó estava maravilhada por viajar e conhecer países além de passar a temporada da filmagem na Itália.

O que aconteceu com Björn nesses 50 anos já dá para perceber na primeira cena do documentário O Garoto Mais Bonito do Mundo. Um Tadzio de rosto vincado, cabelos enormes e barba brancos, magérrimo, está sendo despejado por manter o apartamento imundo, cheio de traças e insetos que corroem o colchão e os lençóis, acusado de esquecer o gás do fogão ligado enquanto sai ou dorme. “Minha casa é um risco ambiental”, reconhece um Tadzio muito envelhecido para os 65 anos, sem guardar vestígio daquela beleza promissora e eterna. Tadzio ficou um desastre e a causa foi a atuação em Morte em Veneza.

Björn não tinha mãe nem pai; aos poucos o documentário vai desenhando a tragédia pessoal do garoto encolhido que fascinou Visconti como fascinaria Dick Bogarde que personificou o compositor. O filme insinuaria um amor homoerótico sem que o compositor tivesse tocado nele. Era uma paixão narcisista, um clarão de desejo, um anjo da morte já que Aschenbach/Bogarde morre em seguida. Ninguém cuidou do que acontecia com o garoto de 15 anos que queria ser músico e de repente virou objeto de desejo por onde passava. A ideia era congelar a imagem de Tadzio para sempre, como só acontece nos filmes.

Mas Björn, cresceu, não foi nada do que poderia ter sido, casou e descasou, teve dois filhos perdeu um porque bebia demais e não cuidou do menino sob sua guarda. E ainda não tinha resolvido a figura da mãe que havia abandonado a casa e foi encontrada morta de forma trágica. Era a avó que queria um neto famoso vestido de marinheiro e passeando de roupa de banho pelo Grand Hôtel des Bains em Veneza, como ficou registrado no filme. A avó viajou com uma super 8 e filmava tudo.

“Eu estava apavorado, cercado de abutres, era um pesadelo, sentia que me admiravam, me reconheciam, me bajulavam, por que aquilo tudo de repente?”, um Tadzio irreconhecível pergunta, “isso não era base para autoestima, não se podia confiar neles”. Todos queriam tirar alguma coisa de Tadzio. Quando o filme terminou, ele perdeu a proteção de Visconti. “Vovó dormia e eu era levado para lugares com paredes vermelhas e pretas, homens com lábios molhados me olhando, línguas se movendo na minha direção simulando boquete, eu bebendo muito, virando um copo atrás do outro e não me lembro como chegava em casa”. Por três anos, Björn/Tadzio foi cercado por multidões de jornalistas, recebia milhares de cartas apaixonadas, bilhetes de amor. Mas permanecia o Björn passivo, neto de uma avó estrela. “Queriam cortar mechas do meu cabelo com tesouras; pensei ‘isto não pode estar me acontecendo’”, eu queria ser outra coisa”.

Ele não sabe explicar como se sustentou nos anos em que morou em Paris, “um certo Duran me sustentou, pagava tudo, almoços e jantares caros; eu devia ser ingênuo para aceitar aquilo, recebia 500 francos por semana em 1976. Era um objeto sexual, se eu soubesse antes, não teria ido a Paris”.
Quando ele canta a música que fez no Japão, a namorada Jéssica, presente ao documentário, diz “há um quê de homossexualidade no seu comportamento no Japão”. E Björn, “não me lembro, eu tomava os comprimidos vermelhos que me davam e cantava, foi tudo rápido demais”. No Japão ele inspirou um personagem de mangá e a artista diz que desenha a imagem perfeita do garoto há 45 anos, até hoje
O documentário reproduz a seleção de Visconti, trechos de Morte em Veneza e vídeos antigos. Nas entrevistas, pessoas que o conheceram lembram o lado sombrio de Björn. Mais tarde ele resolveu ser ator, estudou teatro, mas admite que sua “tristeza interior” não ajudou. O desaparecimento da mãe sem explicação estava no centro do desamparo e da destruição que se seguiu ao sucesso do filme. O Garoto Mais Bonito do Mundo é uma reflexão sobre o tempo e as manhas da vida, se você não tomar as rédeas do seu destino ou não for orientado para isso. É no fundo, um filme triste sobre uma obra-prima de Visconti que achou, naquele momento, a pessoa certa. Mas segundo Björn, hoje, “o que eu vivi foram todas as coisas incertas”.

O Garoto Mais Bonito do Mundo é destaque da 45a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e pode ser assistido no site 45.mostra.org .

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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).