O jornalista Jefferson Del Rios está lançando o livro Teatro, literatura, pessoas, uma coletânea de críticas teatrais publicadas por ele nos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo e na revista Bravo entre os anos 1970 e 2015.
Título da Coleção Críticas, das Edições Sesc São Paulo, a obra reúne décadas de críticas publicadas na imprensa brasileira, relembrando algumas das montagens mais icônicas do teatro brasileiro, entre elas Macunaíma (1978), Trate-me Leão (1978), Calabar (1980), The Flash and Crash Days (1992) e Hamlet (2008). A obra ainda traz artigos sobre teatro e literatura e perfis como os de Augusto Boal, Cacilda Becker, Gianfrancesco Guarnieri, Marília Pêra, Paulo Autran e Sônia Braga, entre outros, além de entrevistas com Fernanda Montenegro, Raul Cortez, José Saramago, António Lobo Antunes, Jorge Lavelli, Maria Velho da Costa e Pedro Juan Gutiérrez.
Paulista de Ourinhos, Jefferson chegou a São Paulo nos anos 1960 e encontrou no jornalismo cultural sua principal expressão. Foi professor de dramaturgia brasileira no conservatório nacional de Lisboa e já escreveu outras obras sobre arte, como O teatro de Victor Garcia: a vida sempre em jogo. Maria Adelaide Amaral lembra que Jefferson faz parte da notável geração de críticos de teatro que incluem nomes como Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado, dentre outros. Jefferson conversou com o Observatório da Imprensa sobre teatro, livro, cena cultural e, é claro, jornalismo.
Como foi o processo de pesquisa e seleção dos artigos para compor o livro? Quais critérios foram observados?
Valorizar artistas teatrais e escritores que realmente são importantes. Não cabe tudo e nem todos (minhas críticas completas estão em dois volumes da Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial).
O que mudou no teatro brasileiro entre os anos 1970 e as duas primeiras décadas do século XXI, período contemplado na seleção de artigos do livro?
Depois da ditadura, houve uma expansão de grupos novos que chegaram a um público mais jovem. O teatro deixou de ser engravatado.
O livro também contempla o período da ditadura militar, em que o teatro foi um espaço de resistência. O que essa experiência pode ensinar às tentativas de cerceamento da liberdade de expressão no Brasil contemporâneo?
Os artistas do palco, sem serem necessariamente ideologizados, resistem. A censura enfrentou gente de coragem, como a grande atriz Cacilda Becker e Plínio Marcos. O teatro se abriu para a anistia e as Diretas Já, em memoráveis assembleias no Teatro Ruth Escobar.
Além das críticas, o livro reúne entrevistas e perfis feitos para as revistas Vogue, Nova e Bravo de artistas como Raul Cortez, Pedro Nava, Cacilda Becker, dentre outros do teatro e da literatura. Como esses dois gêneros jornalísticos – a entrevista e o perfil – podem contribuir para iluminar a vida cultural do país?
Os nomes acima citados mostram que o Brasil tem um teatro de qualidade internacional, o que visitantes artistas estrangeiros confirmam. Um país pode não ser o centro do mundo, mas ter uma arte de primeira, como o Brasil, a Polônia e a Romênia, para ficar em três exemplos. Vou para outra área: Villa-Lobos e os pianistas Magdalena Tagliaferro e Nelson Freire. Em Londres vivem os pianistas Cristina Ortiz e Arnaldo Cohen. Em pintura, Antonio Dias (Alemanha).
Uma das preciosidades do livro é uma experiência flâneur sua em companhia do dramaturgo Fernando Arrabal pelas ruas de São Paulo. Como se deu essa amizade e qual importância dela na sua trajetória?
Questão de temperamento e tática jornalística. Arrabal já sabia de mim, e eu sei fazer amizades sem aquela aflição do entrevistador. Foi assim que fiquei amigo de Saramago, por exemplo. Prefiro perder a matéria e ganhar o ser humano. Um dia, um dia, terei aquela entrevista. Veja meu encontro com Fernanda Montenegro e o perfil de Marília Pêra (que me ligou em lágrimas agradecendo).
Seu livro é o resultado de 46 anos de crítica cultural veiculada, principalmente, na grande imprensa. Um período em que havia uma relativa centralidade dos espaços de reflexão cultural nos veículos de tradição impressa, algo que parece ter mudado nos últimos anos com a presença do digital. O que ganhamos e o que perdemos à luz dessas transformações na relação entre jornalismo e crítica teatral?
As novas mídias liquidaram a crítica em papel e posso trabalhar em outras áreas, como política internacional. Fui correspondente da Folha na Revolução dos Cravos, em Portugal. Dois anos. Cobri a eleição do Equador, a primeira depois do ciclo militar na América Latina. O Equador é modesto, mas o fato político tinha importância.Fiquei um franco-atirador com trabalhos escritos esporádicos, palestras, debates, mas, como colaborador, no sistema PJ (pessoa jurídica). E fazendo meus livros.
Que orientação daria para um jovem jornalista interessado em se especializar em crítica cultural, considerando a realidade atual?
Ter formação cultural, ler. Aturem o meu óbvio, mas não há outro jeito. Não cair matando. Demonstrar que conhece a obra e tem algo pertinente a dizer. Grandes personalidades estão saturadas de chatos perguntando o mesmo, atentem a isso, preguem uma surpresa para eles. Não joguem charme.
Em Portugal, o escritor António Lobo Antunes, que é um tipo temperamental, botou para correr os apressadinhos e ficamos amigos. Tente gostar do entrevistado (salvo se for uma figura detestável). Uma noite, em São Paulo, ganhei a amizade de Eugène Ionesco, um dos mestres do teatro do século XX, porque comecei perguntando do rei Carol da Romênia. Ele ficou espantado: você sabe dele? Respondo que sabia não só dele como do pai, o rei Fernando, e a primeira-ministra comunista Ana Pauker. Ele, ex-exilado romeno, ficou encantado.
Para terminar, começar com algo diferente para o entrevistado. Ganhei a simpatia do Leonel Brizola, no auge das Diretas Já, conversando sobre cachorros (ele, fazendeiro no Uruguai, tinha vários. Falamos um tempão). O resto foi tranquilo.
A tradição do perfil jornalístico
Para além da variedade de críticas teatrais contemplando os últimos quarenta anos dos palcos brasileiros, Teatro, Literatura e Pessoas traz um importante acervo de perfis e entrevistas feitos por Jefferson Del Rios. O livro é tanto um documento da vida cultural brasileira das últimas quatro décadas quanto um aprendizado de certa tradição de mediação do jornalismo cultural entre plateias e palco, a obra literária e a vida. O olhar atento do jornalista buscava expor contradições, captar afetos, materializados em texto conciso e elegante. Um gesto de sinceridade no tratamento das pautas, raro hoje em dia.
Há uma riqueza de detalhes, um poder de síntese que ilumina personalidades de grandes artistas, como Marília Pêra, Raul Cortez, Pedro Nava e Sônia Braga, dentre outros, todos perfilados a partir de um ponto de vista íntimo que resulta de uma proximidade intelectual e afetiva do autor com os temas que trabalha. A leitura dessas histórias nos conecta com uma potência criativa que interessa às relações entre jornalismo e cultura na vida brasileira contemporânea.
“A supermulher de rosto comum”, junho de 1981
“Escalopinho e vinho branco: perfeitos para uma noite de muita conversa numa cantina paulistana. Marília Pêra acabou de representar, mais uma vez, Brasil da censura à abertura e, agora, pede escalopinho ao limão. Marco Nanini, amigo, parceiro de todas as horas, também está presente. Ele prefere uma boa picanha: antes, porém, uma vodca com gelo, por favor.”
“Sônia Braga – Olhos nos olhos”, outubro de 1981
“A moreninha de traços miúdos e delicados sobe a escadaria do velho prédio da rua do Catete, Rio, e toca a campainha do estúdio fotográfico. Quando atendem, ela fica emoldurada na porta. Pequena e quase frágil. Mas o sorriso é intenso, a voz rouca e o olhos brilham. Veste jeans, camisa azul claro e tênis surrado. Displicente e espontânea, mas a roupa é Fiorucci e aquela moça é Sônia Braga.”
“A fascinante Regra do Jogo, de Cláudio Abramo, jornalista”, dezembro de 1988
“Cláudio escrevia com segurança e concisão, extravasando conhecimento histórico e permanente indignação moral, o que faz desses escritos um irrepreensível retrato crítico do país e uma lição de jornalismo e sua ética. Por todas as razões expostas, o livro, com prefácio de Mino Carta e Janio de Freitas, têm grandeza e uma inevitável solenidade que o distingue dos relatos setoriais ou meramente aventurosos envolvendo jornais e jornalistas.”
***
Pedro Varoni é jornalista.