
(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
A ditadura civil-militar foi um dos períodos mais sombrios da história do Brasil (1964-1985). Para justificar as suas ações, os militares elaboraram e registraram documentos que buscavam assegurar a legalidade de seus atos e do regime, que perdurou por vinte e um anos. Nesse cenário, instaurava-se no país um clima de terror e medo.
Contudo, diversos grupos compostos principalmente por intelectuais, artistas, políticos de esquerda, ativistas de movimentos sindicais, professores e estudantes se opuseram ao regime, tornando-se alvos de perseguições, prisões arbitrárias, torturas, expulsões e censura sobre suas produções. No meio artístico, obras como peças de teatro, filmes, músicas e livros foram mutilados, forçando muitos desses artistas e intelectuais ao exílio.
Foi nesse contexto que a arte, especialmente a Música Popular Brasileira (MPB), adotou uma postura crítica frente ao regime militar. Compositores e intérpretes como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros, foram censurados e perseguidos pelos militares.
Diante da censura política e moral, muitos compositores passaram a recorrer a recursos linguísticos e mensagens subliminares, a fim de construir um ethos de resistência ao regime, persuadir o público e escapar da vigilância dos censores.
As canções daquele período continuam a ser lembradas como símbolos de resistência. Entre elas, pode-se citar “Disparada” (Geraldo Vandré e Théo de Barros), “Apesar de Você” (Chico Buarque), “Cálice” (Chico Buarque e Gilberto Gil) e “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores” (Geraldo Vandré).
Os dêiticos [1], a metáfora [2] e a ironia [3] foram alguns dos recursos utilizados pelos compositores para denunciar, com licença poética, a realidade da época e manifestar o repúdio ao regime autoritário, tendo passado diversas vezes pelo filtro desatento dos censores. Em “O Nacional e o Popular na Canção de Protesto (Os Anos 60)”, Arnaldo Daraya Contier explica que a canção de protesto representava uma intervenção política do artista na realidade social do país, com o objetivo de transformá-la e construir uma sociedade mais justa.
Os festivais de Música Popular foram espaços fundamentais para a difusão da arte por meio de mensagens de luta, nos quais os intérpretes buscavam atingir não apenas os grupos mais privilegiados (intelectuais e universitários), mas também as camadas populares da sociedade.
Em “Música é informação”, Heloísa de Araújo Duarte Valente afirma que “toda música é um complexo que resulta da cultura à qual está inserida. Assim, toda música está referenciada à história, aos dados sociopolíticos e estéticos, entre outros”. Nesse sentido, a música não se limita a ser “boa para ouvir”, mas também é “boa para pensar”.
Durante o auge da ditadura civil-militar, com a implantação do Ato Institucional n° 5 (AI-5) pelo governo de Costa e Silva, o Estado passou a controlar (por meio de espionagem, censura política e moral, violência policial, entre outros) todos os meios de informação, tornando proibido qualquer tipo de crítica, sátira ou questionamento ao regime.
Contudo, com a redemocratização do país e a promulgação da Constituição Federal de 1988, a liberdade de expressão intelectual e artística, independentemente de censura ou licença, foi consolidada como um direito fundamental e cláusula pétrea, conforme o artigo 5º, inciso IX.
Nesse novo contexto, a música, enquanto manifestação cultural, se manteve como uma poderosa ferramenta de expressão e reflexão sobre a realidade social e política do país, capaz de despertar consciências e incitar mudanças.
Apesar disso, a música também enfrenta desafios que limitam seu papel como veículo de conscientização política e cultural. Um desses desafios é a saturação do mercado musical. A indústria musical contemporânea está fortemente voltada para a comercialização e o consumo rápido, o que frequentemente marginaliza músicas com mensagens profundas ou críticas.
Artistas que buscam usar a música como forma de protesto ou reflexão sobre questões sociais e políticas encontram dificuldades em se destacar em meio a uma infinidade de produções destinadas ao entretenimento superficial, com hits comerciais de curta duração que não deixam nenhuma mensagem relevante para as gerações futuras. É a era do “Tchê Tchererê Tchê Tchê”!
Além disso, o Brasil vive atualmente uma polarização política que se intensificou com a ascensão de Jair Messias Bolsonaro ao poder e persiste até hoje, mesmo após sua derrota nas últimas eleições presidenciais. Isso tem agravado o regime democrático, com o crescimento de uma confusão ideológica que tem naturalizado bordões como “Bandido bom é bandido morto” e “Deus, Pátria e Família”.
Nesse ambiente, as pessoas tendem a se cercar de conteúdos que reforçam suas próprias crenças, em vez de se abrir para outras perspectivas. Ademais, episódios lamentáveis, como os clamores de seus simpatizantes por intervenção militar, assim como pela volta do AI-5, entre outras manifestações inadmissíveis, culminaram com a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, o que revela a desconexão de discursos com a realidade político-constitucional brasileira.
Embora a Constituição Federal de 1988 tenha dado ampla liberdade artística dentro de um projeto de fortalecimento do Estado Democrático de Direito, a globalização, a homogeneização cultural e o mercado musical voltado para o entretenimento têm incentivado muitos “artistas” brasileiros a buscar audiências globais por meio de adaptações musicais que visem, exclusivamente, agradar as massas. Esses hits invadem os lares e são cantados por pessoas de diversas camadas sociais, mas carecem de qualquer potencial crítico e reflexivo sobre as questões sociais e políticas que realmente importam.
No dia 2 de março de 2025, o filme brasileiro “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, que denuncia atrocidades que foram vividas na ditadura civil-militar, por meio da história autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva com enfoque na vida de sua mãe, Eunice Paiva, ganhou o Oscar de melhor filme internacional.
À vista disso, é fundamental também que se crie um espaço onde músicas com potencial transformador possam ser mais ouvidas e valorizadas. Isso envolve não apenas o apoio a artistas que abordam temas políticos e culturais, mas também uma mudança na forma como a música é consumida.
Ao romper com as limitações do mercado e da conformidade, a música pode recuperar seu papel mais profundo de reflexão e, quem sabe, até de mudança social. Afinal de contas, como tão bem expressou o poeta Ferreira Gullar, “a arte existe, porque a vida não basta!”
Notas:
[1] O uso do pronome permite uma interlocução imaginária para dizer o que não podia ser dito, como em “Apesar de você – Chico Buarque – 1970” onde se canta: Hoje você é quem manda falou, tá falado não tem discussão; a minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão (…).
[2] Utilizada para transmitir mensagens políticas, como se pode ver em “O bêbado e a equilibrista – Aldir Blanc e João Bosco -1976”, onde se canta: Caía a tarde feito um viaduto e um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos; a lua tal qual a dona do bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel; e nuvens! lá no mata-borrão do céu chupavam manchas torturadas – Que sufoco! Louco! (…). Já em “Cálice”, a mesma estratégia foi utilizada por Chico Buarque e Gilberto Gil – 1973, por meio de estrofes, tais como: Pai! Afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue; como beber dessa bebida amarga tragar a dor e engolir a labuta? Mesmo calada a boca resta o peito; silêncio na cidade não se escuta (…).
[3] Recurso dependente da cumplicidade do leitor/ouvinte para ser compreendido, como em “Deus lhe pague – Chico Buarque – 1971”, onde se canta: Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir; a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir; por me deixar respirar, por me deixar existir; Deus lhe pague (…).
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Renê Iarley da Rocha Marques, Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Vale do Acaraú e em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Advogado e Professor universitário. Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Autor dos livros O sistema de garantias no Brasil para a defesa dos direitos culturais dos povos indígenas (Dialética, 2023) e Nós Bambeia mas não arreia: história, memória & cultura do povo indígena Tapuya Kariri na Serra da Ibiapaba e sua luta por direitos (Dialética, 2024).