Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Regina Duarte no Instagram: torcendo Ivens Machado e Paulo Bruscky

(Foto: Reprodução Instagram @reginaduarte)

O perigo de desvirtuar um trabalho de arte quando se escreve sobre este é muito grande, é um risco. Por isso, exige atenção, pesquisa e reflexão – coisas que dão trabalho e podem ser aborrecidas, à primeira vista. Exigem a matéria tempo.

Há alguns dias, Regina Duarte, secretária de Cultura do governo, postou uma foto do trabalho de Ivens Machado (1942-2015) junto a uma proposta lúdica de um livro infantojuvenil e escreveu em sua conta no Instagram: “#arte de ines machado-🇧🇷 ela trabalhou o país com cacos de vidro mas a gente pode brincar com tufos de papel celofane verde… e tudo é #arte neste confinamento de #CoronaVirus/ março /2020”. Depois de criticada – inclusive pelo perfil do Projeto Ivens Machado, que preserva a memória do artista e promove sua produção – por ter trocado Ivens por Ines, postou o seguinte texto (repleto de erros de pontuação, acentuação e espaçamento): “To desconfiada até que fui traída pelo corretor automático do meu cel… Desculpas por ele E por minha falta de revisão…”. A tese foi comprada com orgulho pelos bolsonaristas, que passaram a criticar os meios de comunicação por darem atenção ao erro na escrita – uma “bobagem”, na visão deles. Mas os seguidores de Regina e Bolsonaro esqueceram de apontar, convenientemente, que corretor ortográfico não troca gênero concordante, isto é, “ele” não vira “ela”. E que Ivens, para virar Ines, deveria ter ao menos a primeira letra maiúscula, além de um acento circunflexo – sem contar os pormenores gramaticais da resposta, em geral.

É interessante notar as escolhas confusas de Regina: diz-se que os olavistas não a preferiram exatamente por não ser tão radical, por dar espaço a supostos esquerdistas. E ela, ao elencar esse tipo de imagem para postar em sua rede social, apenas aumenta a confusão: angaria mais antipatia da ala olavista e continua sem obter nenhum apoio da esquerda.

Pensando o trabalho de Ivens Machado, fico de certa forma querendo sê-lo, adorando tudo, pensando nas relações dos materiais, sentindo coisas que não sei nomear, querendo me aproximar dos seus segredos… E lembro de Tunga, Celeida Tostes, Jasper Johns… Quem será que tem uma trajetória artística próxima à de Ivens? Sua personalidade artística, da qual seus trabalhos derivaram, não se aproxima da minha. Mas não é exatamente essa a graça da coisa? Ao mergulhar no enigma insolúvel do artista, exagerado através da materialidade do trabalho, percebo com mais facilidade os temas: violência, sexualidade… A dificuldade de interpretar o trabalho de Ivens não é um impeditivo cansativo, mas, ao contrário, serve como estímulo vivo, pulsante, um convite instigante ao mergulho no seu universo – o equivalente a uma “porta de entrada para drogas mais pesadas”, como diriam os mais conservadores.

O Mapa mudo, trabalho citado por Regina, é um dos mais conhecidos de Ivens. Ele até diz, em um vídeo do programa Catálogo, de Marcos Ribeiro, que as pessoas achavam que o único trabalho que ele havia feito tinha sido exatamente o Mapa mudo, porque andava por exposições pelo mundo todo. Não posso falar pela posição política de Ivens, morto em 2015, mas seus temas e sua trajetória, em geral, não me parecem ser da preferência de um público muito conservador. Ao ver um mapa com cacos de vidro – feito de uma aura não aproximável pelo perigo dos cortes, pela alusão aos muros que têm em sua superfície os cacos verdes utilizados por Ivens, o concreto armado de sua estrutura -, somos levados a crer que suas metáforas tensionam a mudez do mapa e pouco têm a ver com um espírito patriota (fixação hipócrita dos bolsonaristas). Victor Arruda, grande nome da arte brasileira, escreveu: “Ivens Machado era um artista muito consciente da importância da ARTE e tinha um extremo cuidado em relação à sua produção. Fomos, durante décadas, muito amigos e garanto que ele ficaria aborrecidíssimo com o desastrado uso da imagem de um trabalho seu”.

Em outra postagem em sua rede social, Regina coloca, sem os créditos do fotógrafo ou do artista, uma performance de Paulo Bruscky intitulada O que é a arte? Pra que serve?, realizada na livraria Moderna, no Recife, em 1978. Paulo Bruscky é um artista expoente da arte conceitual brasileira e tem alguns trabalhos em que questiona exatamente esse papel da arte, seus significados, problemáticas e suas possíveis induções e estigmatizações. Trabalhando com vários materiais e linguagens, o artista, ao longo do tempo, não só lançou-se à problemática da arte em si mas concentrou expressiva parte de sua produção em um conteúdo crítico da situação sociopolítica brasileira. Teve exposições censuradas pela ditadura militar. Fez um trabalho que “descomemorou” os cinquenta anos do golpe de 1964. Disse, na Bienal de Veneza, em 2017, se recusar a representar o Brasil: “Eu me recusaria a representar um país que acaba de passar por um golpe, com os militares apoiando o governo. Isso é uma coisa vergonhosa” (o artista acabou integrando o pavilhão internacional da Bienal, e não o brasileiro). E, perto das eleições de 2018 que elegeram Bolsonaro, Bruscky foi agredido num bar em Recife por bolsonaristas que não gostaram do discurso político do artista. “Eu aproveitei que havia muitos jovens para falar de como eu lutei pela liberdade para abrir as portas da democracia e de como é importante, neste momento de eleições, que eles reflitam e não deixem o fascismo voltar a fechar essa porta”, disse Bruscky ao Jornal do Commercio em 23 de setembro de 2018. Vale lembrar, também, que Bruscky tem trabalhos denominados Pelos nossos desaparecidos e Vende-se ou aluga-se, pintados em uma parede exterior da galeria A Gentil Carioca: o primeiro denuncia o desaparecimento de pessoas durante a ditadura militar brasileira; o segundo traz uma visão crítica do atual governo. Dessa maneira, ver o trabalho de Bruscky colocado em um ambiente virtual cuja administradora defende e trabalha por ideias contrárias às suas parece realmente uma afronta. Mas Regina tem este histórico de vampirizar e descontextualizar falas e trabalhos: antes mesmo de entrar para o cargo que hoje ocupa, postou uma montagem de fotos com colegas atrizes e atores que pretensamente a apoiavam, mas logo em seguida, ao saber dessa divulgação, vários deles se posicionaram, pedindo que ela retirasse imediatamente suas fotografias da montagem que apoiava o governo. Alguns, inclusive, afirmaram que esperavam que ela fizesse um bom trabalho, mas que não concordavam com a administração de Bolsonaro – caso de Carolina Ferraz, Maitê Proença, Carla Daniel e Luiz Fernando Guimarães. Ou seja, Regina Duarte deu o primeiro passo no cargo já com o espírito das fake news encarnado.

Depois que Roberto Alvim, o antigo secretário de Cultura, fez um pronunciamento copiando frases de discurso de Joseph Goebbels (ministro da Propaganda de Hitler), vindo a ser despedido, Regina veio como uma nova cara para a cultura, utilizando seu histórico de fama popular – conquistado exatamente através da emissora de TV que Bolsonaro mais detesta. Com histórico de conservadora, lembrada muitas vezes pela frase “eu estou com medo” (“medo” de uma possível vitória de Lula – a declaração foi feita em um programa eleitoral de 2002, em favor de José Serra), a atriz, agora ex-contratada da Globo, teve logo uma de suas primeiras ações de trabalho vetadas. Se durante seu discurso de posse, no dia 4 de março, Regina ressaltou que o convite feito pelo presidente lhe prometia autonomia – “O convite que me trouxe até aqui falava em porteira fechada, carta branca. Não vou esquecer não, presidente” -, menos de uma semana depois sua “carta branca” foi rasgada: Regina tentou nomear a assistente social Maria do Carmo Brant de Carvalho para a Secretaria da Diversidade, mas a nomeação foi desfeita no mesmo dia pelo chefe da Casa Civil, general Braga Netto.

Regina veio para apaziguar. Postou, recentemente, no Instagram, uma foto de um fragmento de um artigo de José Eduardo Agualusa – adiantaria dizer a ela que o escritor é um crítico de Bolsonaro? Porém, como o escritor citou a Bíblia em certo trecho – tema mágico para os conservadores -, Regina ligou seu alerta: seu referencial normativo traduziu de maneira positivada o que leu. A parte do artigo grifada por Regina dizia: “Sim, sobreviveremos à pandemia. Mas sobreviveremos ao que vem depois?”. Provavelmente, a intenção da secretária de Cultura era enfatizar sua posição anti-isolamento social – já defendida em um post anterior, com uma foto de seu rosto coberto com papel toalha e finalizado com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Regina interpreta esses artistas com a bagagem conservadora seletiva que tem, mesmo diante de trabalhos críticos e libertários que pretensamente não serviriam ao bolsonarismo. Essas suas ações acabam comprometendo o conteúdo dos trabalhos de Ivens e Bruscky, por exemplo, pois legitimam um arbítrio do pensamento, onde tudo pode servir ao projeto ultraconservador. Essa capacidade de torcer os conteúdos naturaliza vieses muito úteis ao crescimento do imaginário autoritário brasileiro atual.

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Alex Frechette é artista plástico, formado em Pintura na Escola de Belas Artes da UFRJ e especializado em Arte e Cultura pela Universidade Candido Mendes, com mestrado em Turismo pela UFF. É autor do livro Copa pra quem? Olimpíadas pra quem? Arte e megaeventos esportivos no Rio de Janeiro – Contranarrativas na cidade turística.