Um dos melhores programas culturais de São Paulo começa neste mês de outubro, e acontece entre os dias 20 de outubro e 2 de novembro: a Mostra Internacional de Cinema, que apresenta 223 títulos escolhidos a dedo. Entre eles, o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Triângulo da Tristeza” de Ruben Östlund, “Os Anos Super8” do prêmio Nobel de Literatura deste ano, Annie Ernaux, “Sem Ursos”, do iraniano Jafar Panahi, que dribla mais uma vez a proibição de filmar durante 20 anos, desde sua prisão em 2010. São filmes premiados nos festivais de Cannes, San Sebastian, Berlim, Veneza e Locarno, que poderão ou não entrar em circuito. Daí a urgência de entrar no site da Mostra e reservar ingressos.
A Mostra exibe 73 títulos brasileiros e homenageia Doris Monteiro no filme de Alex Viany restaurado, “Agulha no Palheiro”, de 1953. O poster do muralista Eduardo Kobra remete à “Viagem à Lua” de Georges Meliès, realizado há 120 anos com uma garota olhando a cidade de São Paulo ao fundo, indicando que o cinema leva a imaginação para um universo muito superior ao da realidade.
O Festival é um presente para a cidade de São Paulo, iniciado quase sem recursos externos há 46 anos por Leon Cakoff e mantido até este ano pela mulher de Leon, Renata de Almeida.
2022 conseguiu ser um ano mais difícil do que o anterior, sem os patrocínios importantes da Petrobrás, do BNDS nem da lei PROAC e da hoje inexistente lei Rouanet. Mas conta com o SESC, SPCINE, ITAÚ e vários parceiros para se lançar com opções imperdíveis.
Traz algumas pérolas como “A Esposa de Thaikóvski”, dirigido por Kirill Serebrennikov, um desafeto de Putin, que retrata o gênio da música como gay quando a homossexualidade era renegada. O filme “Bardo”, da Netflix, dirigido pelo mexicano González Inãrritu, “La Mamain et la Putain”, de Jean Eustache, e o novo filme de Marco Bellocchio.
Além do excelente “Armageddon Time” com Anthony Hopkins e Anne Hathaway nos papéis principais, Hopkins é o avô e consciência crítica do garoto Paul Graff (Banks Repeta) estudante do Queens. Paul revive a infância do próprio diretor James Gray, na América prestes a eleger Ronald Reagan, na era Trump, infestada de racismo e com ecos de preconceito contra latinos e judeus.
Este ano, o presente vem embalado para as vésperas do segundo turno das eleições com 70% de mulheres diretoras, e a exposição de preconceitos, discussão de valores, desigualdade social, violências, deseducação, fundamentalismo religioso, estudantes alertando o mundo para o direito de exigir seu protagonismo na sociedade, a ocupação das ruas, o direito de sonhar. Como revela o documentário “Quem os Impede”, do espanhol Jonás Trueba, que filmou de 2016 a 2021 o desejo e tormentos dos adolescentes. Bom para o eleitor brasileiro refletir sobre o futuro e o seu voto dia 30. Até porque o título do pôster e vinheta da Mostra é “Volte a Sonhar”.
Basta dar uma olhada por alguns exemplos de filmes a ser exibidos:
O VISITANTE, direção de Martin Buolocq, Bolívia/Uruguai,86 min
A frase “estigma é estigma” permeia o filme na figura de Humberto, que retorna à sua cidade depois de um período na prisão. Vivido pelo cantor de ópera Enrique Araoz, Humberto ganhar alguns tostões cantando nos enterros e velórios, “para los muertos” enquanto, montado em sua única posse, uma moto, ele tenta resgatar a filha da casa dos avós, para onde a levaram depois de perder a mãe e o pai, no caso por encarceramento.
A história é um triste retrato social da América Latina varado pela histeria religiosa, onde Carlos e Elisabethe, os pastores e avós de sua filha Aleida, são os únicos que se beneficiam dos dízimos. São brancos, moram e vivem uma vida farta e muitíssimo bem, enquanto os fiéis, de origem indígena como Humberto, sua filha Aleida e sua mãe Normita sobrevivem na pobreza. Norma é criada da casa dos sogros pastores de Humberto, e sua mulher, adotada pelo casal, era de origem indígena como Aleida.
Na busca sem sucesso pela guarda da filha, Humberto é jogado no teatro evangélico do sogro, que clama pelo diabo e despe sua alma diante de uma plateia incensada pelo delírio religioso. Humberto nunca conseguirá resgatar a filha das mãos dos pastores, está no lugar de pecador.
Para atrair Aleida para sua própria história de vida, ele mostra o diário da mãe, que provavelmente se matou, uma mulher revoltada com a insanidade religiosa dos pais que a adotaram. “Papai e mamãe mencionaram o diabo três vezes”, escreveu no diário, marcando a desconfiança e o drama vivido na casa dos pais-pastores. Aleida, ao ler as memórias da mãe, se revolta.
Ao encontrar o diário nas mãos da neta, os sogros pastores encontram mais um motivo para aumentar o estigma de transgressor de Humberto, e afastá-lo ainda mais da filha.
O ambiente percebido por Aleida é de julgamentos e hipocrisias, dogmas utilizados como arma de poder sobre a população e contestado por um amigo, descrente como Humberto, “a Bíblia entrou no palácio, quem escreveu a Bíblia foi o homem”.
A avó paterna, Normita, conta ao filho as revoluções que sua família viveu na Bolívia, quanta opressão, que Humberto desafoga no canto lírico e o resto, desamparado pelo Estado,
RESTOS DO VENTO, direção de Tiago Guedes, Portugal,126 min
Um ritual perverso que aterroriza as meninas acuadas por rapazes encapuzados se repete todas as vezes que o vento do deserto se levanta, uma tradição numa aldeia minúscula no interior de Portugal. As meninas assim expiam suas “culpas”, apanham de chicote enquanto os rapazes, batendo, tornam-se “homens”, aqueles que cresceram machistas e misóginos. Inacreditável imaginar que há somente 25 anos,1997, isso acontecia em Portugal e pode se repetir hoje.
Mas nem sempre o que as avós e mães aceitaram será engolido hoje pelas netas e filhas, de jeans, mini-saia e celular na mão. E se algum dos meninos se penalizar, ou se enamorasse da garota escolhida para ser surrada, e se recusasse a cumprir o ritual? É o que acontece no filme com Laureano. O adolescente que se recusa a fazer parte do ritual “másculo”, é espancado até cair desfalecido, coberto de cicatrizes e de humilhação.
A roda gira, os adolescentes crescem, vão se colocando nos quadros tradicionais da sociedade: o padre, o policial, o dono de bar, o empresário, quase todos casados com as mesmas meninas que açoitaram. Mas Laureano não se integra, é o pária da aldeia, conversando melhor com os cães do que com os ex-colegas.
O que o filme de mais de 2 horas revela é que a brincadeira não é tão inocente e carrega desejos de vingança e castigo. Que podem levar 25 anos. E como os ventos que vêm e que vão, um dia o que era apenas um rito para acabar em festa culmina num crime, e num segredo. Quem seria o verdadeiro culpado do assassinato, já que são todos cúmplices desta tradição violenta? Nada num lugarejo como este fica sem troco e uma geração vinga a outra, como acontece em “Abril Despedaçado”, o magnífico livro do albanês Ismail Kadaré, refilmado no sertão brasileiro por Walter Salles Jr. E mais sangue rega esta história.
O filme tem ótimo elenco, mas é um tanto longo e prova que para o o português falado do lado de lá, mesmo com toda a emigração brasileira, ainda necessita legendas do lado de cá.
ESTAÇÃO CATORZE, direção de Diana Cardoso, México, 87 min.
Pelos olhos de um menino de sete anos, a vida é introjetada com violência pelo assassinato sem Justiça para os culpados, como acontece nas favelas ou comunidades pobres da América Latina, no caso, o México. O mais intrigante para Luís, o protagonista, é descobrir que os vizinhos saqueiam a casa das vítimas em vez de ajudar a apagar o incêndio, e um desses vizinhos é seu pai, Manuel.
O filme vai rolando pelos olhos da criança que descobre o insensato da vida no próprio pai, que mente, exerce um machismo tóxico e é capaz de se vingar de suas próprias fraquezas na mulher, nos mais fracos ou nos indefesos como o cachorro de Luís.
Nada nos é estranho na América Latina, nem a vida dura da mulher cuidando dos filhos pequenos, da casa, da comida, da mãe, da avó, mulheres como esteio da família, que tem em Manuel um homem que não sabe ser marido nem pai.
A pobreza é o pano de fundo na Estação onde o trem é o único estímulo externo que passa pelos trilhos. E a professora da escolinha pública, a luz que pode abrir o mundo pequeno das crianças, que têm como única distração a bola, os animais de rua, o perigoso trilho do trem.
É o filme de uma diretora mulher, Diana Cardozo, que deixa a marca de sua sensibilidade feminina e maternal.
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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).