Uma abordagem diferente que tece uma relação mais profunda de lutas contra a degradação não só ambiental mas da vida como fonte de fruiçao e prazer. Degradação que obedece uma lógica que como diz o artigo do historiador e arqueólogo arquiteto e professor Francisco Marshall atende exclusivamente os interesses de “tecnocratas e especuladores gananciosos que, sem visão arquitetônica e urbanística decente, pretendem usurpar a autoria da cidade, e nos impor como fato consumado”… O artigo foi escrito a propósito da polêmica em curso em Porto Alegre envolvendo lideranças comunitárias, políticos, gestores municipais e acadêmicos sobre a revitalização do cais do porto da capital gaúcha.
Reproduzimos abaixo os dois primeiros parágrafos do artigo de Francisco Marshall;
Cidade é a nave em que atravessamos séculos, e com ela ornamos e destruímos nossa nave mãe, Terra, “o errante navegante”. A cidade é engenho terrível, que transforma e exaure a natureza, muda o espaço, o tempo e a condição humana; é carne de pedra, expressão com que Richard Sennett simboliza as relações orgânicas entre corpo, habitação e cidade, nosso habitat mimético. Com Foucault, lemos como este espaço ordenado molda as mentes e desenha os sentidos do poder e da história. A cidade é reflexiva, e nela se acumula a sua própria enciclopédia, e o seu conjunto de informações genéticas, sinais, códigos, mensagens (patrimônio) e, sobretudo, os cenários dinâmicos em que transformamos nossos corpos, linguagens, costumes e desejos (cultura). Mais que ruas e praças, a cidade é parte de nosso ser, cenário de nosso destino e garantia de nossa potência histórica.
A motivação gregária está em muitas espécies animais, e se intensifica, em nosso caso, com a descoberta do fogo, com o Homo erectus, cerca de 1,5 milhão de anos antes do presente (a.p.); à volta da fogueira, nossos ancestrais assaram comida, contaram histórias, viram o mundo se transformar por sua arte e técnica, e paulatinamente transformaram-se em seres modernos. Talvez o recém-descoberto Homo naledi mude paradigmas, mas por ora tem-se que o salto cultural seguinte foi o desenvolvimento de cultura funerária, sua imaginação abstrata, noção de tempo e finitude, coordenação ritual coletiva, cerca de 300 mil anos a.p.. A cidade, mesmo sendo fato muito recente na história evolutiva humana (5 mil anos), desenvolveu rapidamente o seu arsenal de recursos para se tornar o principal cenário das interações humanas, cativar, satisfazer e motivar a reprodução eficiente da espécie. Para isso, a cidade deve não apenas dar abrigo e comida, mas sobretudo prazer aos que nela vivem…
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