Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Especialistas de Brasil, França e Inglaterra debatem digitalização e desafios da democracia na USP

(Foto: Thiago Soares – arquivo pessoal)

Aconteceu no dia 26/8, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), o seminário “Identidades, Tecnologias e os Fins da Democracia”. O evento foi parte da agenda que celebra o acordo de cooperação entre a ECA/USP e o Centre d’Analyse et de Recherche Interdisciplinaires sur les Médias (CARISM), da Universidade de Paris 2 – Panthéon-Assas, e contou com especialistas do Brasil, França e Inglaterra, num diálogo sobre o efeito das novas dinâmicas da digitalização nas democracias e nas identidades.

Em sua abertura, o evento tratou das questões que articulam as novas relações entre tecnologia e sociedade. “Não diria que a democracia está chegando ao fim, mas há um conjunto de pequenos problemas localizados que, somados, definem o que seria uma crise”, apontou o professor Gilson Schwartz (ECA/USP), organizador e mediador do evento.

A professora Saba Hussain, da Universidade de Birmingham, deu início ao debate ao tratar da relação entre identidades e tecnologia. Pesquisadora dedicada às expressões de resistência de grupos minoritários, Hussain falou sobre a situação política da Índia, apresentando as relações entre a extrema direita e as novas ferramentas de comunicação, um fenômeno ao qual chama de “tecnofascismo”. “A violência contra minorias é um fenômeno antigo na Índia, mas há algo novo acontecendo nos últimos dez anos, que é a violência contra minorias sancionada pelo Estado”, apontou.

O individualismo como elemento central no uso e desenvolvimento de tecnologias, explicou a pesquisadora, é um vetor essencial para a disseminação de conceitos nativistas e autoritários na sociedade indiana: “Há uma mobilização de cidadãos para que se tornem ‘vigilantes’, agindo como os olhos e ouvidos do regime”. A pesquisadora também destacou a importância de estratégias de resistência possibilitadas pela educação e pela criação de conteúdo feminista.

Em seguida, o professor Vinícius Rodrigues Vieira, da FAAP, tratou da relação entre tecnologia e relações internacionais. “Um grande tema é a regulação internacional da internet, com entraves entre grandes potências, o Ocidente com uma visão próxima do liberalismo, e as potências orientais, que, por vezes, adotam posturas mais autocráticas”. O impacto das Big Techs nos cenários de comunicação dos países também é um elemento a ser considerado.

“O aspecto global das grandes plataformas leva ao desaparecimento do nacionalismo nas mídias; há, porém, um aspecto interessante nesse fenômeno, que é o surgimento de novas identidades”, lembrou. A questão da regulação das redes sociais também foi destacada por Vieira, que levantou as dificuldades de se equilibrar, de um lado, a implementação de regras que não coloquem em risco as liberdades individuais e, de outro, a violência e a opressão contra minorias, que podem ser permitidas na total ausência de regulações.

A importância da ancestralidade e da identidade foi o tema da fala de Rosângela Hilário, do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República e do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da USP. A professora trouxe ao debate a relação entre opressão, racismo e as tecnologias sociais. “Nós, pessoas pretas, chegamos aqui porque dominávamos uma tecnologia que os europeus não dominavam, como mineração e agricultura. Compartilhamos saberes ancestrais que tínhamos e, em contrapartida, eles escravizaram o nosso povo”. E continuou: “Quando se exclui um indivíduo do processo de criação de uma tecnologia, essa tecnologia reproduzirá quem a criou – e os desenvolvedores de tecnologias de inteligência artificial, por exemplo, são, em sua enorme maioria, brancos”.

Para a professora, o descompasso no modo como direitos sociais são estendidos a grupos brancos e não-brancos leva a uma deficiência central no próprio funcionamento da democracia. “A gente tem que diferenciar os direitos sociais, que são aqueles que o grupo define quem pode ter ou não, e os direitos civis, que são aqueles que, em tese, são garantidos pela Constituição. Normalmente, as pessoas pretas e pobres não têm seus direitos sociais. No momento em que os direitos sociais se sobrepõem aos direitos civis, a gente não pode falar de democracia – democracia é um lugar onde direitos sociais e civis caminham lado a lado”, explicou.

O evento prosseguiu com o professor Jaércio da Silva, da Universidade de Paris 2, Panthéon-Assas. Em sua fala, o pesquisador apresentou a história e o funcionamento do convênio entre as universidades francesa e brasileira. O acordo terá, como um de seus eixos, o projeto de pesquisa que articula a produção literária dos dois países, a partir das escritoras negras Carolina Maria de Jesus, brasileira, e Françoise Ega, francesa. “A ideia desse trabalho é propor uma discussão sobre representatividade, identidade e visibilidade”, afirmou Silva. A parceria ocorre no âmbito do centenário das relações entre França e Brasil.

A fala de encerramento foi de Vitor Blotta, professor da ECA/USP e coordenador do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL). Blotta tratou do fenômeno ao qual dá o nome de “ordem desinformativa”, definido pela conexão entre processos de violência já existentes e as relações de poder e opressão no universo da comunicação digital. Segundo Blotta, “há uma dimensão de violência interseccional, porque ela reforça violências estruturais raciais, sociais, educacionais, geracionais; mas também nos ajuda a ver as sobreposições, as relações de dominação em termos de mídias distintas – do digital querendo se sobrepor em relação à radiodifusão ou em relação à tecnologia do livro, por exemplo.”

Resgatando o pensamento do intelectual camaronês Achille Mbembe, Blotta lembrou da relação entre violência, vigilância e colonialismo. Citando algumas das ideias do livro Crítica da Razão Negra, de Mbembe, o professor ressaltou que “as formas de violência e opressão contemporâneas estão ligadas a técnicas de vigilância, dominação e violência que aprofundam as formas de colonização que os povos têm sofrido. A ideia é tentar olhar as interseccionalidades e as diferentes formas de violência”. E concluiu: “Projetos como este têm uma grande possibilidade de produzir uma digitalização emancipatória”.

O seminário “Identidades, Tecnologias e os Fins da Democracia” foi uma parceria do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL), do Instituto de Estudos Avançados (IEA) e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (PPGHDL).

O evento pode ser visto, na íntegra, no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=zZelMGn72kc

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Tiago C. Soares é jornalista e doutor em História Econômica pela USP. É integrante do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-IEA/USP), e pesquisador bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).