O constituinte originário apontou, para além de qualquer dúvida, a necessidade imperiosa de defesa da ordem constitucional e a qualificação da máxima gravidade dos atentados contra o regime democrático ao dispor no art. 5o, inciso XLIV, da Constituição: “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Nesse sentido, o Código Penal foi modificado pela Lei n. 14.197, de 2021, para definir os crimes de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” (artigo 359-L); e de “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído” (artigo 359-M).
Já disse, e repito com convicção crescente, que é preciso afirmar a forte atuação das instituições estatais em suas próprias defesas e no resguardo do regime democrático. A intensidade dessa atuação deverá ter relação direta com a forma e potência dos agravos verificados. É viável registrar, com viés político e jurídico, que a legítima defesa da democracia é lícita quando lança mão dos meios e da energia necessária para repelir a agressão indevida de forma eficiente. Diante de afrontas sérias, organizadas e violentas contra a democracia não é aceitável uma ação leniente, frouxa, inconsequente ou que permita avançar os golpismos de todos os gêneros. Uma postura firme e decidida (que não deve ser confundida com autoritarismo) é uma exigência democrática e fundada na Constituição. A falta de unidade e intensidade na disposição de defesa das instituições democráticas transforma as cogitações golpistas em ações golpistas e, logo depois, as tentativas golpistas em sucessos golpistas.
Costuma-se anunciar, com razão, que os crimes de supressão do Estado Democrático de Direito e do governo constituído só ocorrem quando as tentativas são malogradas. Se o golpe é dado com sucesso, o grupo civil e/ou militar envolvido, instalado no poder e governando de forma antidemocrática, interdita qualquer iniciativa de apuração de responsabilidades e aplicação de punições. As desculpas mais esfarrapadas são esgrimidas: a) conter a ameaça comunista; b) barrar a marcha do mal; c) restabelecer a ordem (o que quer que seja isso); d) por fim a criminalidade crescente (como se fosse possível por uma passe de mágica) e e) salvar a família, a tradição, a moralidade, a Pátria e os bons costumes.
Nos últimos meses, a sociedade brasileira testemunhou o acúmulo crescente de evidências demonstradoras de que uma trama golpista foi planejada e tentada. A supressão do Estado Democrático de Direito envolvia de forma imediata o não acatamento do resultado das eleições presidenciais de 2022 possivelmente contrárias ao pleito de reeleição do senhor Jair Messias Bolsonaro.
Nos últimos dias foi acrescentado ao já significativo conjunto de elementos que apontam para a existência de uma trama golpista a gravação em vídeo de uma suposta reunião ministerial conduzida pelo ex-Presidente Bolsonaro em julho de 2022. O encontro não discutiu a situação econômica do País, o andamento das políticas públicas, o funcionamento da Administração Pública, as relações internacionais ou projetos em tramitação no Parlamento.
As intervenções durante a reunião trataram do iminente insucesso eleitoral do candidato à reeleição para Presidente da República. A possível derrota foi posta como um cenário caótico e inaceitável. A vitória do atual Presidente da República foi pintada como uma espécie de “fim do mundo”, com a instalação de tudo de ruim e que não presta na face da Terra. Obviamente, esse tipo de análise estava exclusivamente assentado na disputa eleitoral pela ocupação dos espaços de poder político. Afinal, o atual Chefe do Poder Executivo federal figura inequivocamente entre os mais moderados políticos brasileiros e um dos mais fiéis guardiões do fundamental do status quo socioeconômico vivenciado pela nação brasileira. De radical, comunista ou coisa do gênero, o senhor Luís Inácio Lula da Silva só tem a (conveniente) fama.
As falas gravadas, e apresentadas pela Polícia Federal ao Supremo Tribunal Federal, por conta de uma série de investigações que remontam à delação do ex-ajudante de ordens (de Bolsonaro) Mauro Cid, revelam afirmações, profundamente incriminadoras, como as seguintes (recortados os trechos mais contundentes, conforme a Petição STF n. 12.100/DF):
Nós não podemos esperar chegar 23, olhar para trás e falar: o que que nós não fizemos para o Brasil chegar à situação de hoje em dia? Nós temos que nos expor. Cada um de nós. Não podemos esperar que outro façam por nós. Não podemos nos omitir. Nos calar. Nos esconder. Nos acomodar. (…) nós vamos esperar chegar 23, 24, pra se foder? Depois perguntar: porquê que não tomei providência lá trás? (…) Porque os cara tão preparando tudo, pô! Pro Lula ganhar no primeiro turno, na fraude. Vou mostrar como e porquê. Alguém acredita aqui em FACHIN, BARROSO, ALEXANDRE DE MORAES? Alguém acredita? Se acreditar levanta o braço! Acredita que eles são pessoas isentas, tão preocupado em fazer justiça, seguir a Constituição? (…) Não tem como esse cara ganhar a eleição no voto. Não tem como ganhar no voto. (…) O nosso Supremo aqui é um poder à parte. É um super Supremo. Eles decidem tudo. Fora … Muitas vezes fora das quatro linhas ( … ) Pessoal, perder uma eleição não tem problema nenhum. Nós não podemos é perder a Democracia numa eleição fraudada! Olha o Fachin. Os cara não têm limite. Eu não vou falar que o Fachin tá levando 30 milhões de dólares. Não vou falar isso aí. O … que o Barroso tá levando 30 milhões de dólares. Não vou falar isso aí. Que o Alexandre de Moraes tá levando 50 milhões de dólares. Não vou falar isso aí. Não vou levar pra esse lado. Não tenho prova, pô! Mas algo esquisito está acontecendo (Jair Bolsonaro)
Tem muitos aqui que eu não sei nem se tem estrutura pra ouvir o que a gente tá falando aqui. Com todo o respeito a todos. Mas eu queria começar por uma frase que o Presidente colocou aqui, que eu acho muito verdadeira. (…) Senhores, todos vão se foder! Eu quero deixar bem claro isso. Porque se … eu não tô dizendo que … eu quero que cada um pense no que pode fazer previamente porque todos vão se foder (…) A gente vai atuar de uma forma mais incisiva. Já estamos atuando. Mas eu acho que o mais importante é cada um entender o momento agora e as colocações que a gente deve fazer. A gente realmente deve mostrar é … a nossa … a nossa preocupação com tudo isso que tá acontecendo no Brasil e com o futuro do Brasil (Anderson Torres)
Vou falar aqui muito claro. Senhores! A comissão é pra inglês ver. Nunca essa comissão sentou numa mesa e discutiu uma proposta. É retórica, discurso, ataque à Democracia (…) O que eu sinto nesse momento é apenas na linha de contato com o inimigo. (…) Pra encerrar… senhor Presidente eu estou realizando reuniões com os Comandantes de Força quase que semanalmente. Esse cenário, nós estudamos, nós trabalhamos. Nós temos reuniões pela frente, decisivas pra gente ver o que pode ser feito; que ações poderão ser tomadas pra que a gente possa ter transparência, segurança, condições de auditoria e que as eleições se transcorram da forma como a gente sonha! E o senhor, com o que a gente vê no dia a dia, tenhamos o êxito de reelegê-lo e esse é o desejo de todos nós (General Paulo Sérgio)
Então, tem que ser antes. Tem que acontecer antes. Como nós queremos. Dentro de um estado de normalidade. Mas é muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o País pensando assim, pra que aconteça antes, do que assumir um risco muito maior de conturbação no ‘the day after’, né? Quando a fotografia lá for de quem a fraude determinar (General Mário Fernandes)
Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições (…) Eu acho que as coisas têm que ser feitas antes das eleições. E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas. Isso pra mim é muito claro (General Augusto Heleno)
Curiosamente, o ex-Presidente e seus apoiadores sustentam que não se tratava de nenhuma trama golpista. Um dos pontos altos dessa defesa foi a afirmação de que a palavra “golpe” não foi utilizada por nenhum dos presentes na aludida reunião. Assim, se ninguém falou em golpe, não era esse o tema dos debates. Seria como o meliante que, de arma em punho, exige os pertences de um transeunte e não comete o crime de roubo por não ter mencionado a palavra “assalto”.
Outro dos argumentos de defesa é que não se organiza um golpe em reuniões palacianas gravadas. Em tese, essa afirmação faz algum sentido. Entretanto, é preciso levar em conta quem é a figura principal dessa trapalhada golpista e o nível intelectual e moral do seu entorno mais próximo. Não parece que ninguém com um mínimo de seriedade possa sustentar a presença de maior densidade de conhecimentos, equilíbrio mental e inteligência no grupo golpista. Em outras palavras, a indigência mental dos principais atores da aventura autoritária é algo fora de qualquer dúvida razoável. Esse aspecto aliado a uma sensação de impunidade e de que o movimento então engendrado era uma verdadeira tentativa de salvar a Pátria conduziu ao inusitado da gravação do referido encontro em vídeo e seu posterior armazenamento.
Não custa lembrar uma célebre frase. Afirma-se que Deus limitou a inteligência, mas não a estupidez (popularmente designada de burrice). Eu acrescento à sabedoria popular uma outra ordem de considerações. A estupidez golpista é ilimitada, mas não é contagiosa. Não é possível esperar que a evidente deficiência cognitiva típica de certos setores da sociedade brasileira possa se espalhar, como uma doença, para a maioria ou totalidade dos brasileiros.
Aguardemos as cenas dos próximos capítulos das investigações acerca do mais recente episódio de golpismo no Brasil. As falas na “reunião ministerial” de julho de 2022 não são elementos isolados ou meras bravatas. Os conteúdos dos pronunciamentos estão nitidamente articulados, entre outros, com: a) um projeto de decreto com previsão de prisão de autoridades e medidas de exceção (“minuta do golpe”); b) reunião com embaixadores para “denunciar” a “fraude eleitoral”; c) financiamento e organização de movimentações de apoiadores, inclusive com atos extremos de depredação do patrimônio público; d) busca de apoio para ações ostensivas de tropas das Forças Armadas e e) uma campanha virulenta e grosseira de ataque às instituições democráticas e autoridades públicas.
Quanto à “minuta do golpe”, existem algumas falas do ex-ajudante de ordens (de Bolsonaro) Mauro Cid, dirigida ao General Freire Gomes, onde constam os seguintes trechos: “… É hoje o que que ele [Bolsonaro] fez hoje de manhã? Ele enxugou o decreto, né? Aqueles considerandos que o senhor viu e enxugou o decreto, fez um decreto muito mais, é, resumido, né? … ele mexeu naquele decreto, né. Ele reduziu bastante. Fez algo muito mais direto, objetivo e curto, e limitado, né” (Petição STF n. 12.100/DF).
Pelo visto e ouvido, o crescimento quantitativo e qualitativo de evidências da prática de vários crimes graves propiciará uma escalada proporcional de justificativas e desculpas “esfarrapadas” dos envolvidos direta e indiretamente com a trama golpista. Ouviremos com frequência crescente as seguintes palavras e frases, com inúmeras variações: a) perseguição; b) não sei de nada; c) isso foi coisa da iniciativa exclusiva de fulano; d) fui acometido de cegueira e desorientação momentâneas; e) fui induzido a erro; f) beltrano me traiu; g) esses documentos foram plantados; h) as gravações foram adulteradas; i) esses elementos foram obtidos de forma ilícita/ilegal (são, portanto, imprestáveis); j) ninguém confessou nada e k) só a Interpol tem isenção para realizar investigações criminais.
Decididamente, o Brasil não é um país para amadores.
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Aldemario Araujo Castro é Advogado, Mestre em Direito e Procurador da Fazenda Nacional