A diferença entre jornalismo e ativismo político está no papel que cada um representa. Ambos têm sua própria visão de mundo (já que a neutralidade absoluta na imprensa é um mito), mas o jornalismo busca o compromisso de representar a pluralidade de vozes e opiniões, reconhecendo que é essencial dar espaço a diferentes perspectivas, mesmo que não concorde com todas elas. A multiplicidade de visões sempre existirá, e ignorar isso para impor uma realidade onde apenas a opinião de um grupo prevalece é, no mínimo, arbitrário.
Dito isso, devemos concordar que a extrema direita tenha espaço para se expressar no maior jornal do Brasil? Devemos tratar isso como um fato irrelevante? Creio que não.
No dia 10 de novembro, o jornal Folha de S.Paulo publicou em seu site o artigo “Aceitem a democracia“, assinado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. No texto, Bolsonaro adota um discurso aparentemente democrático para defender as pautas da direita e retratar a esquerda como inimiga da democracia, afirmando que valores como ordem, liberdade econômica, respeito à família e à religião refletem o desejo da maioria. Ele acusa os opositores de ignorarem a “vontade popular” e sugere que a esquerda não aceita resultados eleitorais desfavoráveis.
Essa retórica visa deslegitimar a oposição ao apresentar a direita como a única defensora autêntica da democracia e dos interesses do povo, mas ignora as consequências polarizadoras e excludentes das políticas promovidas pela extrema direita. Classificando qualquer crítica como antidemocrática, o texto adota uma retórica de vitimização para fortalecer sua própria agenda, desconsiderando os efeitos negativos de certas práticas e ideologias sobre o tecido social e os direitos fundamentais.
A contradição desse discurso é evidente. Após a eleição de Lula (PT), a extrema direita protagonizou ações antidemocráticas no dia 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores de Bolsonaro atacaram as sedes dos Três Poderes em Brasília em uma tentativa de questionar a legitimidade do processo eleitoral e desestabilizar o governo recém-eleito.
O uso seletivo do conceito de democracia, aplicado apenas em momentos convenientes, revela um comprometimento frágil com os princípios democráticos e enfraquece a própria ideia de democracia, legitimando ações que, longe de promoverem a liberdade, buscam consolidar uma visão autoritária e desestabilizadora.
Como já mencionado, a diversidade de vozes sempre terá espaço no jornalismo. Contudo, é preciso entender que o discurso da extrema direita não representa apenas uma visão diferente; ele frequentemente dissemina ideias que enfraquecem a coesão social, promovendo exclusão e desprezo por direitos fundamentais, ainda que sob uma fachada de moderação.
Como fica, então, a posição da Folha de S.Paulo ao dar visibilidade a esses discursos? Oferecer espaço para essa retórica vai além de estimular o debate democrático; é, no mínimo, ser conivente com uma narrativa que pode levar à corrosão dos princípios de igualdade e respeito. Ainda assim, deveríamos simplesmente abandonar esse veículo (e outros da grande imprensa)?
Acredito que aqueles que têm consciência concordarão que devemos lutar para ocupar esses espaços e garantir que a democracia seja preservada. Em vez de abdicar desses ambientes, é fundamental que jornalistas, cientistas, educadores, ativistas e outros defensores dos valores democráticos trabalhem para manter esses meios acessíveis a diversas vozes, de modo a impedir que grupos antidemocráticos dominem o discurso público.
Simplesmente boicotar esses veículos é extremamente prejudicial, pois significa renunciar a espaços importantes de debate e visibilidade. Esses canais alcançam um público amplo e influenciam a formação de opinião; abandoná-los deixaria campo livre para que vozes autoritárias e antidemocráticas se fortaleçam sem contraponto.
Isso permitiria que suas falácias ganhassem uma credibilidade implícita ao estarem presentes em veículos de mídia tradicionais. Isso pode fazer com que o público, ao ver essas ideias amplificadas em plataformas de grande alcance, passe a tratá-las como legítimas ou até mesmo como consenso.
O abandono desses espaços pelas vozes comprometidas com o bem público representa um risco, pois enfraquece o contraditório e abre espaço para que a desinformação e as narrativas extremistas ganhem força, comprometendo a pluralidade essencial ao debate.
Como dito, não há jornalismo neutro, pois não existe neutralidade em quem o produz. A luta real que está diante de nós é pela ampliação da diversidade de vozes que, de fato, impulsionarão o progresso do país: de raças, origens, crenças, experiências e pontos de vista. É preciso garantir que diferentes perspectivas ocupem espaço nos veículos de comunicação, enriquecendo o debate público e refletindo a complexidade da sociedade.
Somente com essa pluralidade podemos construir um debate na esfera pública que realmente represente o interesse da população, com representantes de todos os grupos que a compõem. Isso implica abrir espaço para diferentes vozes – de mulheres, pessoas negras, indígenas, pessoas LGBTQIA+, trabalhadores de diversas classes e setores, de todas as regiões do Brasil –, todos aqueles cujas realidades, muitas vezes, são marginalizadas ou invisibilizadas.
A diversidade nas narrativas e nas pautas jornalísticas é essencial para que o público tenha acesso a uma visão mais completa dos problemas e das oportunidades que atravessam nossa sociedade.
É também ao abrir espaço para opiniões de especialistas, para visões experientes sobre a realidade, para aqueles que não buscam interesses individualistas e que estão comprometidos com a construção do país – e não com sua destruição – que o jornalismo poderá cumprir seu papel de fortalecimento da cidadania, questionamento do poder e construção de uma sociedade mais justa e informada.
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Tamires Tavares é jornalista, divulgadora científica e bacharelanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo. É membra do Centro de Estudos SoU_Ciência/Unifesp e da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência. Escreve para o Blog Sou Ciência da Folha de S.Paulo.