A Lei de Acesso à Informação (LAI) [1] brasileira completou dez anos de vigência neste mês de maio de 2022. Se por um lado a celebração se deu em meio a significativos avanços, é preciso reconhecer os percalços e preocupantes retrocessos que marcaram essa caminhada. Cabe dizer, de início, que a LAI foi promulgada no governo Dilma Rousseff, fruto de pressão e mobilização da sociedade civil junto ao Legislativo, e configura-se hoje, sem dúvidas, o mais importante documento para a implementação do regime de transparência no Brasil, haja vista que a partir de sua promulgação e vigência foram criados dispositivos que obrigam o Estado a munir cidadãos e cidadãs de informação de relevância pública, de forma ativa e passiva.
A Lei de Acesso à Informação é hoje a principal ferramenta por meio da qual jornalistas, pesquisadores e quaisquer interessados podem ter acesso às informações públicas, de interesse público, sobre aquilo que acontece na esfera da tomada de decisões. Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo em maio de 2021 [2] mostrou que 51,6% dos jornalistas participantes da pesquisa usaram a LAI para apurar reportagens. Embora também tenham relatado que estes jornalistas encontraram dificuldades para obter respostas – e que o Executivo aparece como o poder com mais problema, em todos os níveis – a pesquisa constata que a LAI é hoje um dispositivo essencial ao jornalismo investigativo e principal ferramenta para a ampliação da transparência. Nesse sentido, não é exagero dizer que a LAI mudou significativamente a forma como se faz jornalismo no país, aumentando a capacidade de jornalistas monitorarem as ações do poder público e de identificarem fraudes e mau uso de recursos públicos. Basta lembrar do recente caso do Orçamento Secreto, revelado pelo Estadão [3] por meio de inúmeros pedidos de acesso à informação. Trata-se, portanto, de um ganho sob a perspectiva das conquistas democráticas.
No entanto, o que temos hoje no Brasil são tentativas de “boicote” à LAI, sobretudo pelo governo federal brasileiro, que tem demonstrado compreender o sigilo como regra e não como exceção – exatamente o contrário do que prevê a própria LAI. De 2019 para cá, não faltam exemplos de tentativas de limitar a Lei de Acesso à Informação, de imposição do sigilo a informações de interesse público, além dos apagões de dados em plena pandemia.
Mais especificamente, este período refere-se ao início da administração de Jair Bolsonaro, marcado pelas tentativas de “frear” ou limitar a Lei de Acesso à Informação. No que tange à classificação de documentos, em janeiro de 2019, o governo editou decreto com a finalidade de alterar a LAI no sentido de ampliar o rol de agentes públicos com poderes para classificar dados e documentos públicos como ultrassecretos, autorizando ministros e secretários executivos a transferirem a servidores em cargo de comissão a responsabilidade por classificar documentos com este grau máximo de sigilo (documentos que só podem ser disponibilizados coletivamente após 25 anos) [4]. Trata-se de um selo normalmente aplicado em casos muito específicos, como aqueles cujo conteúdo pode afetar, de alguma maneira, a segurança do Estado ou da sociedade. O Decreto nº 9690/2020 [5], no entanto, foi revogado parcialmente pelo Congresso Federal.
Em abril de 2019, o governo federal se recusou a divulgar estudos que havia produzido para embasar a emenda da Reforma da Previdência [6]. A reação do Legislativo, no entanto, fez com que o Ministério da Economia, enfim, publicasse tais estudos. Há, ainda, os dados sobre quem são e quanto recebem de pensão vitalícia as filhas herdeiras de militares [7], mantidos sob sigilo pelo Ministério da Defesa, mesmo após o Tribunal de Contas da União (TCU) ter determinado, em setembro de 2019, a divulgação de todos os valores pagos aos pensionistas do Poder Executivo. A justificativa do Ministério é a de que não existe lei obrigando a apresentação desses dados, o que não apenas contradiz a LAI como revela que, para tais atores, a cultura da opacidade é a que deve prevalecer.
Os casos são os mais diversos. Em agosto de 2019, matéria da Revista Época [8] revelou que apenas 36% dos órgãos governamentais estão cumprindo o cronograma de abertura de dados previsto. Mais recentemente, em março de 2020, Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 928/2020, que previa a suspensão dos prazos de respostas de pedidos via LAI por todos os órgãos e entidades da administração pública federal nas áreas em que não houvesse atendimento presencial, por conta do regime de tele-trabalho dos servidores, no contexto da pandemia da COVID-19, além de suspender a possibilidade recursal. O Supremo Tribunal Federal, dessa vez, foi o responsável por reverter tal medida.
Rejeitar, restringir, dificultar o acesso à informação sob o argumento da prerrogativa de classificação de sigilo são medidas que vão de encontro ao funcionamento de um Estado transparente e republicano e têm sido, constantemente, adotadas pelo governo federal. Para além das dificuldades de implementação da LAI acumuladas ao longo dos últimos dez anos – atualmente, menos da metade dos municípios brasileiros têm a LAI regulamentada [9], por exemplo – vimos que, mais recentemente, ameaças e ataques são somados a esses desafios.
Para finalizar, cabe ressaltar que em tempos de democracia constantemente ameaçada, em que os direitos e liberdades dos cidadãos são comprometidos e o funcionamento das instituições democráticas é reiteradamente posto em xeque, as investidas do governo federal para a prevalência da opacidade em detrimento à transparência foram freadas pela atuação do Superior Tribunal Federal e do Congresso Nacional (haja vista os exemplos aqui citados), cujas atuações permitiram assegurar o provimento da transparência pública, requisito previsto normativamente por meio de dispositivos legais como a LAI.
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Notas:
[1] Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em 30 de maio de 2022.
[2] Trata-se da quarta edição do relatório bianual que a Abraji faz desde 2013, com o objetivo de avaliar o uso da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) por jornalistas do Brasil. Disponível em: https://www.abraji.org.br/noticias/pesquisa-aponta-alto-indice-de-jornalistas-que-nunca-fizeram-pedidos-de-acesso-a-informacao. Acesso em 30 de maio de 2022.
[3] Reportagens disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,leia-todas-as-reportagens-sobre-o-orcamento-secreto,70003719972. Acesso em 01 de junho de 2022.
[4] Matéria publicada dia 24 de janeiro de 2019, pelo jornal Folha de São Paulo, intitulada: “Para entidades, mudança na Lei de Acesso à Informação é ‘deplorável’ e um retrocesso”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/para-entidades-mudanca-na-lei-de-acesso-a-informacao-e-deploravel-e-um-retrocesso.shtml. Acesso em 30 de maio de 2022
[5] O decreto nº 9690/2020 está disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/60344275. Acesso em 30 de maio de 2022.
[6] Matéria publicada dia 21 de abril de 2019, pelo jornal Folha de São Paulo, intitulada: “Governo decreta sigilo sobre estudos que embasam reforma da Previdência”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/governo-decreta-sigilo-sobre-estudos-que-embasam-reforma-da-previdencia.shtml. Acesso em 30 de maio de 2022.
[7] Matéria publicada dia 11 de fevereiro de 2020, intitulada: “Governo omite dados de pensão a filhas de militares”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/02/11/governo-omite-dados-de-pensao-a-filhas-de-militares.htm. Acesso em 30 de maio de 2022.
[8] Matéria publicada em 11 de agosto de 2019, Revista Época, intitulada “Primeiro semestre do governo Bolsonaro preocupa especialistas em transparência”. Disponível em: https://epoca.globo.com/brasil/primeiro-semestre-do-governo-bolsonaro-preocupa-especialistas-em-transparencia-23868627. Acesso em 30 de maio de 2022.
[9] Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/12/02/numero-de-municipios-com-lei-de-acesso-a-informacao-mais-que-dobra-em-seis-anos-diz-ibge.ghtml. Acesso em 01 de junho de 2022.
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Maria Paula Almada é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Facom/UFBA), diretora do Aláfia Lab e pesquisadora pós-doc do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). Realizou estágio-doutoral na School of Public Affairs and Administration, Rutgers University (EUA) e estágio de pesquisa no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Atualmente é vice-coordenadora do Grupo de Trabalho “Governo e Parlamento Digital” da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).
Maria Dominguez é doutoranda em Ciência Política pelo IESP-UERJ, pesquisadora associada ao INCT.DD e coordenadora do Programa de Integridade e Governança Pública da Transparência Internacional – Brasil.