
(Foto: Pexels/Pixabay)
O desafio mais complicado do jornalismo contemporâneo está nas pessoas comuns e não na tecnologia ou nas finanças. Parece um contra senso, mas esta é a conclusão que se chega quando se estuda a crise na informação local, o ramo do jornalismo mais afetado pela avalanche de mudanças pela internet, pela avalanche de notícias e agora também pela inteligência artificial.
Sem o envolvimento da população na produção e distribuição de notícias não há como o jornalismo e a imprensa atenderem à necessidade crescente de informações capazes de resolver os dilemas diários das pessoas de todos os níveis sociais. Além disso, sem o apoio econômico de cidadãos e cidadãs é impossível manter financeiramente os profissionais e órgãos de comunicação responsáveis pela produção de notícias.
Estas são constatações básicas quando alguém se preocupa com o que está acontecendo com o jornalismo e a imprensa na sociedade contemporânea. Mas apesar de básicas, elas ainda merecem pouca atenção, porque continuamos contaminados pelo discurso criado e difundido pelas grandes corporações jornalísticas de que elas é que sabem o que é bom, importante e indispensável às pessoas comuns.
A percepção do papel insubstituível das pessoas comuns no desenvolvimento do jornalismo fica nítida no âmbito local, nas pequenas e médias comunidades hoje submetidas a um dilema preocupante: de um lado, o crescente descrédito e rejeição da imprensa, enquanto do outro as pessoas enfrentam o caos informativo, a desinformação orquestrada e as armadilhas criadas por espertalhões e delinquentes. O desdobramento inevitável é a desconfiança e o ceticismo, principalmente em relação a quem se apresenta como jornalista.
As pessoas querem informações, mas não sabem como obtê-las e muito menos como identificar falsas notícias. Por isto, começam a se organizar em pequenos grupos em aplicativos de mensagens tipo WhatsApp e Instagram para trocar informações e resolver dúvidas e dificuldades mútuas. É uma forma de reagir ao “deserto” informativo criado pela crise dos pequenos e médios jornais ou emissoras de rádio do interior e de bairros periféricos em grandes cidades. Mas é uma solução que embute o risco da formação de bolhas informativas que tendem ao isolacionismo e, consequentemente, também à rejeição de opiniões alheias ao grupo.
Estes comportamentos geralmente passam desapercebidos pelos profissionais contratados por médios e grandes órgãos de imprensa, porque eles estão impregnados da cultura corporativa. Mas o jornalista independente sente na pele uma certa rejeição dos moradores de uma favela ou de um acampamento de sem-terra. Só depois de ganhar a confiança é que consegue obter os dados que busca, o que nem sempre é fácil e rápido. Mais difícil ainda é convencer as pessoas a participar de alguma denúncia ou acusação.
As estratégias da reinvenção
São cada dia mais evidentes os sinais de que o jornalismo e a imprensa precisam se reinventar para que ambos desempenhem o papel fundamental como mediadores no cada vez mais intenso e complexo fluxo de informações em comunidades de todos os tamanhos e características. Isto pode acontecer de duas maneiras: a partir do âmbito global ou desde a base local.
No plano global, pode-se listar as seguintes características:
- É muito provável que as discussões sejam predominantemente teóricas e globais, envolvendo temas de difícil compreensão pela esmagadora maioria das pessoas comuns em qualquer país;
- Normalmente, os debates sobre mudanças na ordem informativa mundial tendem a acontecer em ambientes onde o número de participantes é menor e, portanto, mais sujeitos à influência de poderosos grupos de pressão;
- As eventuais resoluções serão administradas por governos nacionais que hoje enfrentam um processo de desgaste causado pela existência de estruturas burocráticas complexas e poderosas preocupadas mais com seus interesses do que com os da população em geral.
No âmbito local, a situação é bem diferente:
- A maioria dos pesquisadores e jornalistas envolvidos com a oferta de notícias em pequenas e médias cidades admite que os temas globais atraem pouca atenção das pessoas, que dão preferência à discussão dos problemas de sua rua, bairro, cidade ou comunidade.
- É nestes temas que as pessoas se envolvem, participam e buscam soluções;
- Mas são pouco frequentes os casos em que elas se auto-organizam para atingir seus objetivos. Ainda é muito forte a cultura do paternalismo político e empresarial, ou seja, as pessoas preferem reclamar e cobrar da prefeitura ou de empresas esperando que estas instituições forneçam a solução;
- Há uma ignorância quase total entre os moradores de pequenas e médias cidades sobre o papel que as notícias podem ter na solução dos problemas locais, principalmente na capacidade de a informação facilitar a formação de parcerias igualitárias entre contribuintes, governantes e empresas locais.
Quando um jornalista conversa com moradores de pequenas comunidades percebe logo a descrença geral nas grandes soluções em debate no plano nacional sobre questões como regulamentação das plataformas digitais. Mas se dá conta de que a participação das pessoas aumenta rapidamente quando se discute a questão da coleta do lixo ou do atendimento no hospital local. A guerra da Ucrânia é uma curiosidade abstrata, mas a falta de água no bairro ou rua cria uma conexão quase imediata com o jornalismo.
A escolha do assunto adequado no momento oportuno cria condições para o engajamento do jornalismo ou influenciador (1) na população local visando criar fluxos noticiosos. São estes fluxos que permitem fortalecer o sentimento comunitário e a solidariedade coletiva. Para jornalistas e influenciadores é um envolvimento imersivo, sem preocupação com a imparcialidade em questões locais, mas proativo na neutralização de sectarismos, desinformação e autoritarismo.
Quando esta imersão comunitária é bem-sucedida, pode-se passar à etapa seguinte do jornalismo local, que é a participação da população no financiamento de projetos informativos locais. É a etapa mais difícil porque vai mexer com o bolso das pessoas, o que em populações de baixa ou média renda sempre é uma proposta complicada. Caberá ao profissional escolher algumas das opções já testadas em outras localidades e países, como a implantação de uma taxa municipal para informação pública, assinaturas pagas de veículos como jornais ou redes sociais locais, e ainda alternativas como troca de prestação de serviços por acesso às diferentes plataformas de notícias.
Tanto no plano global, mas principalmente no local, a experiência já mostrou que a pesquisa da realidade é a condição obrigatória para resolver o dilema do relacionamento com as pessoas e da sustentabilidade financeira de projetos jornalísticos. As necessidades informativas e as desconfianças das populações locais precisam ser estudadas no detalhe porque sem este conhecimento as chances de insucesso crescem exponencialmente. Superar este obstáculo é o começo do começo no processo de reinvenção do jornalismo na era digital.
Notas
1 – Influenciador é definido aqui como uma pessoa sem formação profissional em jornalismo, mas que desempenha funções informativas autônomas inspiradas em manuais de redação.
***
Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.