Não é comum grandes jornais despublicarem suas reportagens. Apesar de ser uma tarefa relativamente simples na versão online, explicar os motivos consome energia e gera desgaste desnecessário. Não é raro que os leitores imaginem algum interesse oculto redirecionando o noticiário. Foi assim na semana passada quando a Folha de S.Paulo decidiu retirar do ar uma matéria sobre supostas ameaças de extremistas ao deputado estadual Arthur do Val.
Publicada originalmente na coluna de Mônica Bergamo sob o título “Ultranacionalistas russos pedem a cabeça de Arthur do Val após áudios sobre ucranianas”, a matéria se baseava num cartaz escrito em russo com foto do político e recompensa por sua morte. Minutos depois, o conteúdo foi retirado do ar e redirecionado a um texto da coluna que explicava: “A Folha decidiu tirar do ar reportagem sobre reações de grupos extremistas ao deputado estadual Arthur do Val (Podemos-SP) por julgar que não haveria interesse público para justificar a publicação das ameaças”. Nem dez leitores se deram ao trabalho de discutir a mudança no campo de comentários da matéria, e apenas um deles considerou justificável o gesto do jornal. Nas redes sociais, sobraram suspeitas de que a Folha recuou, foi covarde e cedeu a alguma pressão. A julgar pela fragilidade política do deputado – que corre sérios riscos de cassação de mandato -, é difícil acreditar que ele tivesse condições de pressionar um dos jornais mais influentes do país. A verdade é que a história está muito mal contada.
O jornal não explicou aos leitores, por exemplo, o que considera “interesse público”, nem o que sustentou a decisão de retirar o conteúdo de circulação. A atitude repentina encontrou eco na informação de que o cartaz ameaçador era apenas um meme, criado por anônimos nas redes sociais, e que o jornal havia caído numa pegadinha, conforme comentaram os jornalistas Álvaro Borba e Ana Lesnovski, do Meteoro Brasil. De forma previdente, veículos que costumam repercutir matérias da concorrência preferiram também despublicar, como foi o caso da revista Fórum: “ATENÇÃO: Como não havia comprovação da autenticidade do cartaz divulgado nas redes sociais e pela Folha de S. Paulo, Fórum decidiu retirar a matéria do ar para averiguação”. A Folha de S.Paulo não confirmou publicamente ter se deixado trair por uma fake news, mas internamente considerou uma “medida drástica, absolutamente excepcional”, considerando que a publicação poderia embutir riscos. Na edição do domingo (13), o caso foi ignorado pelo ombudsman José Henrique Mariante, que se dedicou a falar da complexidade do processo de moderação de comentários dos leitores.
Precedente
Aparentemente trivial, o caso merece alguma atenção já que se apoia numa das expressões mais invocadas no jornalismo: “interesse público”. Ela serve tanto para justificar decisões editoriais quanto para ocultar insuficiências, fragilidades e falhas. Dizem as boas regras que o jornalismo deve se guiar pelo interesse público para produzir um noticiário equilibrado, plural, diverso, correto e ético. Atender ao interesse público é de alguma forma colocar-se como alguém que não tem interesses particulares que possam contaminar a reportagem. Assim, o jornalista que se orienta pelo interesse público busca um não-lugar, é bem intencionado, legítimo e honesto. Nesta condição, é de se supor que o profissional esteja despido de outros interesses – que podem ser escusos ou reprováveis – e, desta forma, fique livre de questionamentos. Note como a ideia de interesse público tem contornos elásticos e pode servir a conveniências imediatas. É, portanto, um conceito mais estratégico do que operacional para o jornalismo.
Na prática, atender ao interesse público é uma tarefa difícil que, muitas vezes, consiste em se desviar dos muitos interesses particulares. Numa matemática simplista, interesse público tem mais valor que interesse privado, mas o fator risco altera esses pesos. Voltemos ao caso da Folha. Anunciar que um político está sofrendo ameaças de grupos extremistas estrangeiros é notícia? Sim. Por quê? Pela notoriedade do personagem, pela gravidade da situação, pelo alcance do fato e por ser muito inusitado. Além disso, a notícia vincula dois eventos relevantes do momento: a invasão russa e a repercussão dos escandalosos áudios do deputado após sua volta da Ucrânia. Essas ameaças devem ser noticiadas? A julgar pelas circunstâncias, devem. Mas há riscos nisso? Pode haver, caso a notícia “motive” outras perseguições ao deputado. Temos certeza deste efeito? Não, exatamente. Podemos arriscar, então? Não é fácil decidir, mas é necessário.
Para além disso, pode haver uma confusão entre interesse público e interesse do público. A própria Folha de S.Paulo reconhece a dificuldade de distinguir o primeiro do segundo. A edição mais recente do Manual da Redação, de 2021, explica que interesse público “está associado à vida e ao destino coletivos em algum nível (cidade, país)”, enquanto que interesse do público “expressa curiosidade difusa”. Entretanto, menciona que existem situações que mesclam os dois tipos de interesse, como no caso da atriz Angelina Jolie que decidiu remover os seios para evitar um câncer que poderia desenvolver, conforme um prognóstico genético. “O assunto era jornalístico não apenas pela fama da personagem, mas também porque, além de suscitar um debate relevante, em especial para as mulheres, a atitude da atriz tenderia a exercer influência sobre o comportamento de muitas delas”. De volta ao caso de Arthur do Val: é verdade que as supostas ameaças ao deputado afetam diretamente a sua segurança pessoal, mas não interessaria a seus eleitores e colegas de partido, por exemplo, saber delas? A resposta é um sim categórico, o que faz com que o tema extrapole os limites do interesse particular ou privado.
O precedente aberto pela Folha de S.Paulo neste caso permite que outras matérias sejam despublicadas ou pretensamente deletadas da memória coletiva, caso se entenda que não há razão legítima para mantê-las visíveis. Mas uma pergunta precisa ser feita: o interesse público deve ajudar a apagar a história ou deve nos levar a revelar outras que insistem em se manter ocultas?
Para finalizar, consideremos que a Folha foi excessivamente zelosa e recorreu à amplitude do conceito para não gerar efeitos colaterais que arriscassem a vida ou a integridade do deputado. Mas e se não foi isso? E se a matéria originalmente publicada foi um engano jornalístico, fruto da pressa e da não apuração? Se assim foi, e se o jornal recorreu ao interesse público para escamotear suas falhas, errou uma segunda vez, mentindo ao público ao distorcer sobre uma ideia tão preciosa para o jornalismo.
***
Rogério Christofoletti é Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS. Twitter: @christofolettis