“Depois que inventaram desculpa ninguém mais morreu”. O tweet que virou uma espécie de dito popular atribuído ao rapper e compositor Mano Brown, integrante dos Racionais MC’s, parece resumir um sentimento recorrente. Após vir à tona algum absurdo envolvendo empresas, instituições, autoridades ou pessoas públicas em geral, todos se apressam em divulgar uma nota de retratação esperando estancar as críticas e sair do foco. Vida que segue. Mas há erros com consequências tão graves que um pedido de desculpas não é capaz de amenizar a dor ou a perda. É este o sentido da mensagem. Talvez pela conjuntura política aterradora em que estamos imersos ou porque nos tornamos mais exigentes, apenas reconhecer o erro tem sido insuficiente. É preciso ir além: corrigir o malfeito, transformar as condutas e eventualmente punir quem precisa ser punido. Vale para entes políticos, empresas, organizações e, por que não, para jornalistas e meios de comunicação.
Pouco mais de uma semana após a exposição violenta da atriz Klara Castanho por influenciadores digitais e pelo colunista Leo Dias, do portal Metrópoles, ainda estamos acompanhando a repercussão do flagrante desrespeito ao direito da artista à intimidade e à privacidade, além dos inúmeros outros desvios cometidos no caso e condenados pelo Código de Ética do Jornalista Brasileiro (a última edição da newsletter do objETHOS listou os vários artigos infringidos). Sindicatos e associações da classe, além de outros veículos jornalísticos, foram enfáticos nas críticas. No domingo (26), a repórter Renata Ceribelli fez uma longa reportagem para o Fantástico detalhando o caso e apontando os jornalistas, a empresa e os influencers responsáveis pela publicação. Na semana passada, aqui mesmo, a pesquisadora Natália Huf chamou atenção para a responsabilidade das colunas de fofoca que se afirmam jornalísticas, mas passam ao largo dos princípios que regem o bom jornalismo.
Embora parte do público tenha atacado a artista com discursos ferozes de ódio e culpabilização nas redes sociais, obrigando-a a dar explicações por meio de uma carta aberta, outra parcela significativa pressionou Leo Dias e o Metrópoles, desencadeando uma onda de solidariedade com Klara, a retirada da matéria e dois pedidos de perdão assinados no dia seguinte pelo colunista e os diretores de redação. Ainda assim, e isto é o que nos interessa discutir, o que mais deveríamos esperar além da retratação?
Lilian Tahan, Priscilla Borges, Otto Valle e Márcia Delgado assumem o erro de terem deixado passar a publicação e dizem que “o triste episódio servirá de lição para que façamos uma avaliação profunda sobre procedimentos em nossas rotinas”. É uma medida mais do que necessária – urgente, até – diante do histórico do veículo na exploração de casos em que mulheres estão em situação de vulnerabilidade. Basta lembrar da cobertura envolvendo o mendigo Givaldo, que rendeu milhares de cliques ao portal (e a muitos outros que engrossaram o caldo sensacionalista). Mas o que a promessa de revisão significará na prática? Mudar procedimentos nas rotinas da redação, ou de um colunista, pode garantir cuidado ético? Quais parâmetros serão adotados para isso, se o Código de Ética já existente foi ignorado? O público será informado dessas mudanças? Suas críticas serão levadas em consideração? Não sabemos, pelo menos por enquanto.
Logo depois do mea culpa, os leitores de Metrópoles receberam uma promessa de reforço no compromisso com a ética e o rigor no jornalismo, sendo informados apenas de que não será com a demissão do colunista que o portal enfrentará a questão. Em vez disso, os diretores fizeram questão de lembrar uma série de furos de reportagem do jornalista que justificariam sua permanência na empresa.
E o Conselho Federal dos Jornalistas?
O jornalismo, assim como outras profissões, tem uma ética própria. A deontologia profissional da categoria vem sendo construída e reconstruída pelo menos desde o final do século XIX em diversos países. Cada realidade reflete um conjunto específico de orientações. No Brasil, estamos na quarta versão do Código de Ética do Jornalista Brasileiro, de 2007, e há diversos outros documentos de organizações e empresas jornalísticas nacionais que buscam orientar o exercício da profissão. Falta, porém, criar mecanismos legais que permitam a regulação da atividade profissional, de modo a que seja possível dar respostas consistentes à sociedade quando abusos acontecerem.
O vazamento de informações sobre a atriz envolveu profissionais de diferentes áreas. Na saúde, também há códigos de ética e esferas regulatórias que preveem até a perda do registro profissional se for constatada a conduta antiética. Isso é possível porque, no caso da Enfermagem e da Medicina, por exemplo, os conselhos federais e regionais zelam pelos direitos dos profissionais, mas também observam o cumprimento de seus deveres. Grosso modo, é o que fazem as entidades profissionais autônomas de uma classe. Em última instância, essa atuação visa proteger a sociedade, demonstra uma preocupação coletiva.
No jornalismo, o caso reacendeu a discussão sobre a necessidade de um Conselho Federal dos Jornalistas (CFJ), luta de mais de seis décadas encabeçada pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ). O último projeto de lei para a criação do CFJ foi rejeitado pelo Congresso Nacional em 2004, após votação simbólica e sob forte pressão dos proprietários dos meios de comunicação, muitos dos quais parlamentares. Envolta num discurso que busca confundir a opinião pública, argumentando que um Conselho de Jornalistas serviria para censurar os profissionais da mídia, a pauta não avança na esfera política, embora sua necessidade fique cada vez mais evidente.
A inexistência do CFJ enfraquece a aplicação do Código de Ética, que embora preveja sanções como “observação, advertência, suspensão e exclusão do quadro social do sindicato e à publicação da decisão da comissão de ética em veículo de ampla circulação” (Artigo 17), não permite maiores responsabilizações a quem descumpre os valores da profissão. É claro que os profissionais e veículos jornalísticos sempre podem sofrer punições da lei, caso se recorra à Justiça, mas a resposta da categoria ainda parece branda diante de faltas mais graves. Sem poder arbitrar de forma mais incisiva em casos de desrespeito ao pacto coletivo dos próprios jornalistas por uma ética à altura da responsabilidade que exige a atuação, ficamos (jornalistas e públicos) à mercê de promessas e retratações. Parece pouco.