Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“Sem notícias”: um retrato da vida sem jornalismo

(Imagem: Kelly Sikkema na Unsplash)

Não raro, jornalistas questionam sua profissão, seja por todos os desafios da carreira, pelo imperativo dos algoritmos e caça-cliques, ou até pela sensação de estar enxugando gelo em um contexto de muita desinformação – quando as redes sociais se tornaram o principal meio de as pessoas se manterem informadas. Mas convido a uma reflexão: como seria nosso cotidiano sem jornalismo?

Adianto que nada simples. A ausência de jornalismo local limita o debate público e o acesso a direitos, criando o ambiente ideal para propagação de fake news, cerceamento da participação política e manutenção de interesses dos poderosos, sobretudo em um ano de eleições municipais.

Não estamos falando aqui de um cenário distópico, mas da realidade de quase metade dos municípios do país (48,7%), onde vivem 26,7 milhões de brasileiros. Neles, não há nenhum veículo de jornalismo local e independente fazendo a cobertura da cidade. São “desertos de notícias”, como bem define o projeto Atlas da Notícia, responsável por mapear e atualizar a presença da imprensa local nas cidades brasileiras.

Um destes muitos desertos é Pirapora do Bom Jesus, localizada no extremo oeste da Grande São Paulo e um dos municípios mais pobres da região metropolitana. Foi lá que a equipe de reportagem da Agência Mural de Jornalismo das Periferias fez uma imersão e entrevistou dezenas de pessoas para entender como as informações circulam em um território sem jornalismo. O resultado está reunido no especial “Sem Notícias”, publicado na última semana.

“Tudo da cidade a gente vai ouvir, sempre, da boca de algum vereador. Ficamos a esmo de uma notícia que não seja de um político”, lamentou o trabalhador da construção civil Jeanderson Gomes dos Santos, 34, que mora no Parque Payol, periferia de Pirapora do Bom Jesus, distante quatro quilômetros do centro.

Esse tom de “assessoria de imprensa”, como define o também morador e designer Mário Rodrigues, 34, incomoda. “É uma forma dos gestores garantirem seus interesses pessoais. Eu percebo que nas cidades vizinhas as pessoas têm voz mais ativa para cobrar da gestão pública, acho que também por terem mais acesso à informação.”

Não que não haja informações circulando por Pirapora do Bom Jesus. Pelo contrário: as notícias correm rápido por grupos de WhatsApp, carros de som, lives, avisos nas igrejas, redes sociais de vereadores e pelo bom e velho boca a boca. “Somos o jornal um do outro”, resumiu a profissional de apoio escolar Josiane Rocha dos Santos, 47.

E não é difícil imaginar a quantidade de ruídos criados nesse telefone sem fio, que não segue qualquer critério do jornalismo profissional e por vezes se baseia em interesses pessoais e políticos. Como saber o que prefeito e vereadores fazem com o dinheiro público? Ou qual a situação da violência contra a mulher no município? Todas as crianças que têm direito a uma vaga na creche estão matriculadas? Se não, por quê? O jornalismo sério, independente e profissional ajudaria a responder, acompanhar e cobrar soluções.

É importante frisar que os desertos de notícias tendem a ser ainda mais áridos nas periferias, distante dos centros de decisão da cidade, como a Prefeitura e a Câmara Municipal. Em Pirapora, quem mora no Parque Payol precisa se deslocar até o centro para acessar informações básicas, como saber quando começa uma campanha de vacinação ou o início das atividades extracurriculares para crianças e adolescentes.

“Minha filha fez Projovem (Programa Nacional de Inclusão de Jovens), conseguiu o primeiro emprego, estudou e hoje está em Portugal”, conta a professora Maria de Fátima, moradora do centro de Pirapora. “Já meu filho mais novo não se matriculou no Projovem porque as vagas acabaram antes de eu ficar sabendo que estavam abertas”, lamenta Josiane, moradora do Payol.

Fica claro que a falta de jornalismo local faz as informações circularem de forma diferente no território, intensifica desigualdades, limita o debate público e favorece a circulação de fake news, algo extremamente perigoso em um ano de eleições municipais. Sem debates, denúncias e cobranças propostas pela imprensa, as ideias demoram a avançar e até o reconhecimento de problemas sociais e econômicos fica mais difícil.

O contexto problemático de desinformação em Pirapora do Bom Jesus – e em tantos outros municípios brasileiros – nos chama para uma urgência: valorizar e investir no jornalismo profissional. E se as empresas de comunicação tendem a focar atenções nas cidades maiores, com mais dinamismo econômico, especialistas concordam que, mais que nunca, é necessário políticas e investimentos públicos reais que garantam a todos o direito humano à informação, pilar central da democracia.

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Sarah Fernandes é editora-chefe da Agência Mural e coordenadora do especial multimídia “Sem Notícias”.