Estão em seis: quatro crianças de pele caramelo torrado e dois homens adultos retintos. Mãos nas paredes, pernas abertas formando um triângulo isósceles com a linha do calçadão. Três policiais militares conduzem a ação contra o grupo que a Folha de São Paulo apontou como sendo suspeito de formar uma gangue de furtos na região da estação Trianon-MASP. Soma-se esta imagem àquela que parecem ser os mesmos garotos assaltando uma mulher em plena luz do dia e você tem a capa da Folha de São Paulo na edição de sábado, dia 9 de abril de 2022.
Parece que de tempos em tempos, a imagem do homem negro, independentemente da idade, é instrumentalizada nos grandes veículos em prol de uma narrativa reificante, que nos relega ao substrato dos miseráveis por essência. As capturas de Danilo Verpa, fotógrafo da Folha, não só podem ser consideradas problemáticas legal e eticamente como trazem à tona questões mais profundas sobre como o jornalismo brasileiro enxerga corpos pretos, pobres e periféricos num geral.
Na virada de ano de 2018, uma outra imagem não autorizada de uma criança negra causou rebuliço nas redes sociais. Publicado pela agência Reuters, o registro do fotógrafo Lucas Landau — um homem branco tal como Verpa — mostrava um menino de pele retinta descamisado e submerso até a cintura nas águas de Copacabana enquanto olhava para os fogos de artifício do maior Réveillon do Brasil. O instante em P&B do garoto isolado de todos os transeuntes vestidos de branco olhando impressionado para cima evocou o pior das opiniões online: aos montes, usuários das redes emitiam um sentimento de pena não solicitado ao personagem da imagem; pressupunham estar em situação de rua, abandonado ou ser vítima de qualquer outra mazela social que fosse.
Como era de se esperar, o fotógrafo pouco sabia informar sobre o rosto que estampava jornais do mundo todo. Nome, idade, endereço, trabalho dos pais…nada, não havia dado bruto sobre ele, cuja imagem circula até hoje. Havia ali, de princípio, algumas questões éticas, como o fato de que para publicar quaisquer imagens que sejam de crianças há uma necessidade legal de requisitar permissão do responsável, e a outra, obviamente, seria de que o garoto e sua família, para além das questões legais, têm direito a decidir se querem ou não ter suas vidas divulgadas mesmo que por um breve instante — mas, como de costume, o problema de cidadãos pretos não foi tratado com a mesma urgência que seria se se tratassem dos brancos que aproveitavam aquela virada de ano.
Pois María Martín buscou a história por trás da foto para o falecido El País Brasil e relatou que: “Os dias se passaram sem ninguém saber quem era aquele menino, alheio ao rebuliço que sua foto tinha causado. A mãe dele, que não tem celular, não sabe ler nem escrever, nem assinar seu próprio nome, acabou sabendo da repercussão por meio de uma vizinha. Assustada, ela chegou a ir na delegacia de Repressão de Crimes de Informática para apresentar uma queixa. Acreditava que o fotógrafo estava comercializando a imagem sem seu consentimento, algo que Landau sempre negou. A polícia, de fato, não identificou nenhum crime, não haverá investigação e a denúncia ficou resumida a apenas um registro.”
Sendo justo, o fotógrafo, ao que indica a reportagem, entrou em contato com a família depois e buscou com eles um vínculo e uma resolução íntima para o conflito efervescido pelas redes sociais. Quatro anos depois do caso do garoto no Réveillon, neste 2022, ressurge a questão quanto ao nosso direito, enquanto homens negros, de sermos donos de nossas imagens e narrativas. Mas, dessa vez, os agravantes avançam para um caminho perigoso de reforço à imagem do homem negro violento, o que por si só levanta outro ponto: há direitos para criminosos e suspeitos de cometer infrações?
Os casos refletem o empobrecimento da formação filosófica e ética de profissionais de mídia, além da gritante falta de diversidade étnico-racial nas redações brasileiras, que hoje contam com 20% de jornalistas negros, dos quais nem 0,5% trabalham como fotógrafos, denotando o escândalo que é o processo constante e ininterrupto de um olhar embranquecido por trás das lentes que nos informam.
Em suas redes sociais, o fotógrafo Verpa explica o processo de produção desses cliques: “Durante quatro dias acompanhei a ‘Gangue da Paulista’, um grupo formado por cerca de dez crianças, com idades variando entre 10 e 14 anos, e liderados por um maior. Os garotos costumam sair sempre por volta das 9h do vão livre do Masp e realizam furtos em série na avenida Paulista, rua Vergueiro e Av. Liberdade. As vítimas são principalmente mulheres e idosos com objetivo de furtar principalmente correntes de ouro e celular. Na manhã de hoje, quatro garotos de 11 e 12 anos foram apreendidos pela PM após uma série de ataques. Dois rapazes maiores de idade que estavam com o grupo também foram levados para a delegacia.”
O processo de produção da pauta costuma surgir das interações entre repórteres, fotógrafos e editores. Antes do produto final chegar à gráfica, há revisões e discussões que perpassam um grupo de pessoas grande o suficiente para soar estranho (embora nem tanto) que ninguém tenha apontado para o fato de que essas imagens são, de um jeito ou de outro, produções racistas que ferem os (1) direitos das crianças, (2) reforçam estereótipos e (3) clamam por punitivismo. E criticar essa produção por esses três pontos não é de forma alguma negar o valor notícia do fato em si e a necessidade de se achar formas justas e eticamente responsáveis de ilustrar esses acontecimentos. Vale destacar também que o texto em si não carrega tantas questões problemáticas quanto essas imagens que tanto circulam na internet agora.
Direito ferido
Em seu perfil no Twitter, Elisa Cruz, que se apresenta na bio como “Doutora e pesquisadora em direito civil. Professora na FGV Direito-Rio”, apresenta, por meio de um fio, argumentos para enquadrar as imagens como infrações contra os direitos das crianças e adolescentes garantidos especialmente pelo artigo 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “O ECA proíbe divulgação de imagens de adolescentes suspeitos de ato infracional ou ‘condenados’ (art. 143). Não apenas o rosto não pode ser mostrado, como nada que leve à possível identificação. A foto de capa tem altura, roupa e características corporais, permite identificar…”.
Sua perspectiva vai de encontro à de artigos de advogados, juízes e juristas em sites especializados. Como é o caso do escrito por Estevan Facure, “Notícia de jornal pode divulgar a imagem de um menor infrator?”, no qual ele não só evoca o artigo 143 da ECA, como explica que, de acordo com o artigo 247 do estatuto, o disseminador dessas imagens pode pagar até quarenta salários mínimos. Ele avança na conclusão de que: “Ademais, vale destacar que não importa a gravidade do ato praticado, por mais reprovável que seja, pois a lei não faz qualquer tipo de distinção.
“O objetivo da lei é permitir que a pessoa se recupere e não seja estigmatizada para o resto da vida pelos seus atos impróprios de quando era menor de idade. Imaginem, por exemplo, a dificuldade de um adulto em arrumar um emprego em uma cidade em que grande parte da população associa sua imagem aos seus erros do passado da sua época de adolescente. Tem-se uma matéria jornalística que imortaliza os erros do passado dessa pessoa e não permite que ela siga adiante.”
Homem negro violento, ferido e sem direitos
Do ponto de vista político-filosófico, as imagens dos garotos infratores remetem a uma noção bestializante de homens negros. Uma compreensão de que somos por natureza violentos (Não necessariamente esta é a visão do fotógrafo ou de quem autorizou a utilização da foto. Mas, a materialidade da publicação se apresenta de tal forma). A transgressão dos direitos muito possivelmente não ocorreria caso os garotos fossem brancos e de classe média, como provam as manchetes de crimes cometidos por esse estrato da sociedade. Cabe então uma questão-chave: Por que isso ocorre? Provavelmente porque rapazes negros são ‘menos humanos’ que seus pares brancos, e menos ainda se forem pobres e parecerem pobres.
Essa forma de criminoso (merecedor de penas maiores e perda de direitos) é explicada pelo sociólogo Michel Misse pelo conceito de Sujeição Criminal: “podemos considerar que a sujeição criminal é um processo de criminalização de sujeitos, e não de cursos de ação. Trata-se de um sujeito que “carrega” o crime em sua própria alma; não é alguém que comete crimes, mas que sempre cometerá crimes, um bandido, um sujeito perigoso, um sujeito irrecuperável, alguém que se pode desejar naturalmente que morra, que pode ser morto, que seja matável. No limite da sujeição criminal, o sujeito criminoso é aquele que pode ser morto.”
O que Misse não explica é o porquê a sujeição criminal vai se manifestar, principalmente no continente americano, em corpos negros. Para isso, recorremos a Bell Hooks: “Leio qualquer artigo ou livro sobre masculinidade negra e este emitirá a mensagem de que homens negros são violentos. Os autores podem ou não concordar que a violência do homem negro é justificada,[…] mas eles acabarão por concordar que homens negros, enquanto grupo, são fora de controle, selvagens, incivilizados e predadores natos… De fato, muitos dos estereótipos sexistas dos séculos XVIII e XIX atribuídos aos homens negros carregam traços que hoje consideramos pertencerem ao psicopata… De acordo com a ideologia racista, o subjugamento do homem negro pela supremacia branca foi tido como necessário para conter a besta desumanizada.” (tradução livre).
A serviço do punitivismo
A quem servem essas imagens? Nos comentários de sua postagem das fotos, Verpa justifica que, embora reconheça a complexidade da situação dos garotos, sente que seu trabalho se faz necessário para cobrar que o Ministério Público e a Polícia Militar façam alguma coisa para impedir a continuidade desses crimes. Susan Sontag, em seu livro Sobre Fotografia, vai explicar que essa costuma ser mesmo uma das funções da fotografia no mundo capitalista: “As câmeras definem a realidade de duas maneiras essenciais para o funcionamento de uma sociedade industrial avançada: como um espetáculo (para as massas) e como um objeto de vigilância (para os governantes). A produção de imagens também supre uma ideologia dominante. A mudança social é substituída por uma mudança em imagens”.
Assim, de certa forma, a reportagem e o trabalho de Verpa estão em função do braço armado do estado. Talvez uma das facetas estatais mais detestada pela população preta periférica brasileira, e que pouco corresponde às reais necessidades daquelas crianças que, segundo o próprio texto que ilustra as fotos, cometem tais infrações penais por pura necessidade, fruto do completo desamparo social.
No lugar de expor a realidade de crianças pretas perdidas num mundo em que o estado não as representa — podendo até muitas vezes querer eliminá-los, como explicitam casos como a Chacina da Candelária —, as imagens acabam por reforçar a desinfantilização dos personagens que recaem na noção penal de “menor”, que, diferentemente da criança branca e de classe média, é tratada como alguém tão capaz e independente quanto um adulto infrator. Laura Lowenkron escreve: “Essa categoria — posteriormente institucionalizada no campo judicial com a criação do primeiro Juizado de Menores, em 1923, e a promulgação do Código de Menores de 1927 — já era utilizada nos registros policiais do início do século para classificar (e administrar) uma parcela da população infantojuvenil: os chamados menores vadios, abandonados ou delinquentes. Aos poucos, são criadas instituições especializadas e o caráter policialesco e punitivo da administração dos menores é substituído por uma nova tônica pedagógica, porém dotada do mesmo espírito profilático de conter o ‘mal que se adivinha’.”
As imagens alimentam o pânico moral contra a criminalidade, contra a figura do trombadinha e contra jovens negros num geral, sendo que o caminho ético, complexo e mais interessante socialmente para a reportagem seguir seria o de escandalizar não os crimes em si mas as condições que levam jovens desamparados a tal urgência, podendo, até, explorar a complexidade das relações dessas crianças com os adultos que as instrumentalizam em prol desses crimes.
É impossível observar a situação em que se encontram tais garotos e não pensar sobre os apontamentos de panteras negras como Landon Williams: “Não é apenas coincidência que em todas as colônias e semi colônias você veja uma alta taxa de criminalidade. A taxa está diretamente relacionada à exploração e opressão pela classe dominante capitalista. A taxa de criminalidade e a taxa de prostituição em nossas comunidades se devem diretamente à pobre educação, pobre moradia, pobre vestimenta, falta de empregos e uma fome no estômago sempre presente. Estas coisas novamente são diretamente atribuídas ao capitalismo e à exploração. Os guetos nesse país não estão aqui por acidente. Eles são um lugar onde uma fonte prontamente disposta de força de trabalho barata pode ser jogada e armazenada até que seja necessária e como um mercado para despejar bilhões de dólares em bens inferiores e serviços corruptos”.
Referências
SONTAG, Susan. ‘Sobre fotografia’. São Paulo: Cia das Letras, 2012, 224 p.
LOWENKRON, Laura. ‘O Monstro Contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos’. Rio de Janeiro: Ed Uerj, 2015. 448 p.
MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido’”. São Paulo: Lua Nova, 79: 15-38, 2010.
HOOKS, Bell. ‘Bell Hooks – We are cool – black men and masculinity’. New York and London: Routledge, 2004, 152 p
WILLIAMS, Landon. ‘Capitalismo negro e o que isso significa’ In: Todo poder ao povo! São Paulo: Editora Raizes da América, 2017, 175 p.
***
Matheus de Moura é jornalista, escritor, pesquisador na UFRJ e militante negro