Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A desconsolidação da democracia

(Imagem de Engin Akyurt por Pixabay)

Há pelo menos uma década, o mundo tem testemunhado uma série de eventos que apontam para uma nova configuração política, seja tratada em âmbito local, nacional ou global. O declínio da confiança nas instituições democráticas, a autocratização, o populismo e o autoritarismo em ascensão, a ameaça à liberdade de determinados grupos, o espalhamento de desinformação em massa, entre outros fatores, indica que a democracia sofre um processo de desconsolidação. Esse espectro ronda configurações políticas diversas: da Ásia aos Estados Unidos, de Leste a Oeste da Europa, atingindo, ainda, a América Latina.

Nas últimas semanas o tema esteve em alta em diferentes ocasiões: nas eleições presidenciais norte-americanas, com um Donald Trump forte e ainda mais radical em determinados pontos; na vitória de Reunião Nacional (RN), partido de ultradireita, no 1º turno da eleição legislativa na França (até a data de redação deste texto); na segunda condenação de Björn Höcke, líder do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), por utilizar slogan nazista em evento; e na declaração de Javier Milei, afirmando ser ele quem “destrói o Estado por dentro”, e que isso se aproxima do sentimento de estar “infiltrado nas fileiras inimigas”.

Diferentes autores das variadas áreas das Ciências Humanas vêm estudando o tema. Dentre múltiplos fatores abordados, é possível delimitar quatro dimensões que potencializam a atual desconsolidação da democracia enquanto regime político hegemônico. Há uma econômica, a partir de desdobramentos do próprio capitalismo e dos mais recentes efeitos do neoliberalismo, que desencadeiam altas de desemprego, ampliação da desigualdade e maior concentração de renda, em que os mais ricos se tornam cada vez mais ricos e os mais pobres cada vez mais pobres. Essas questões tornam-se ainda mais alarmantes durante crises econômicas, sendo a de 2008 a mais recente e de maior magnitude.

Outra dimensão decorre da globalização, em laços político-econômicos internacionais, seja por meio das grandes corporações multinacionais ou acordos e políticas globais, que incidem em múltiplas decisões, colocando, em certos cenários, a soberania em risco. De maneira subsequente, há uma esfera sociocultural, em que, pela decorrente abrangência da conectividade global e da emancipação de minorias e grupos marginalizados por meio da conquista de direitos, eclodem conflitos que dizem respeito à imigração e preservação de tradições nacionais, valores culturais e religiosos.

Por fim, há a tecnológica, que atua a partir do desenvolvimento das big techs como empresas centrais do capitalismo do século XXI e da digitalização do acesso à informações e veiculação de discursos, tendo como paradigmas o espalhamento de peças desinformativas e do discurso de ódio em velocidade e abrangência nunca antes vistas.

Quando a internet se popularizou, aos poucos foi introduzida em diferentes atividades da vida humana. A política não ficou de fora. Por um lado, o meio é apreendido como novas arenas discursivas, um local capaz de unir contestação, debates e fóruns argumentativos e de deliberação, conectar pessoas e ampliar o acesso à informação — basta alguns cliques e podemos ter acesso a relatos e notícias do mundo todo. Desse modo, movimentos sociais, grupos minoritários e sujeitos até então com pouca inserção nos debates públicos poderiam utilizar esse meio com o intuito de ordenar suas reivindicações, descontentamentos e demandas. Logo, um canal para os “sem voz” obterem “voz”.

Nesse espaço, há uma comunicação autônoma entre os usuários, os quais não dependem dos meios de comunicação de massa, muitas vezes relacionados às elites econômicas ou governos. Dessa forma, os próprios usuários são capazes de formar e expandir laços sociais, assim como produzir e veicular conteúdos, e, consequentemente, dialogar e compartilhar valores e perspectivas com uma audiência.

Esse caráter disruptivo se estende, inclusive, para a atividade jornalística. Os portais jornalísticos independentes, que reportam grupos e paradigmas da sociedade através de uma perspectiva distinta da cobertura da “grande imprensa”, ganham espaço, assim como novas técnicas de comunicação e reportagem, e outras formas de gestão de produtos noticiosos digitais se estabelecem. Um bom exemplo disso é a associação Gênero e Número, que realiza reportagens multimídia baseadas em investigação por meio de dados a respeito de pautas que abrangem o tripé gênero, raça e sexualidade, a fim de apoiar a luta pela garantia dos direitos das mulheres, das populações negra, indígena e LGBTQIA+.

Por outro lado, essas novas mídias provenientes da digitalização da informação podem ser terrenos férteis para a disseminação de peças desinformativas e notícias fraudulentas. Definidos como conteúdos propositalmente criados para enganar, estremecem o debate público, minam a confiança e a credibilidade da imprensa tradicional e, mais do que isso, fomentam uma forma paralela de se fazer política — sobretudo no caráter simbólico da relação entre representantes e representados.

A maneira com que Donald Trump se comporta durante sua campanha é um exemplo interessante disso tudo. Nas três corridas que disputou até hoje aplica um modus operandi similar: diz-se alvo da imprensa democrata (ligada ao partido) e das instituições políticas, as quais, segundo ele, são corrompidas. Nesse sentido, uma narrativa de que as mídias sociais são ferramentas em que ele consegue dialogar com seu eleitorado e expor suas ideias sem as amarras perniciosas de um sistema que quer frear sua campanha e de seus seguidores. Alimenta-se, então, a ideia de que a liberdade de escolha dos eleitores está sendo ameaçada pois o candidato não possui liberdade formal suficiente para se comunicar com eles. Ambos os valores — liberdade de escolha e de expressão — são fundamentais para qualquer democracia. Na norte-americana não é diferente.

Todavia, nessas mídias, pela mesma natureza disruptiva que favorece a formação de uma arena pública capaz de impulsionar abordagens emancipatórias e soluções democráticas sobre determinados temas, Trump é capaz de dispor de uma ecologia midiática a seu favor. Na ciberesfera, possui uma “imprensa” paralela capaz de distorcer dados, criar teorias da conspiração e notícias fraudulentas; se aproxima de seus seguidores/eleitores por meio de conteúdos que ele mesmo publica, incluindo desinformações, memes (os mais recentes envolvem ironizar a saúde física e mental de Joe Biden) e vídeos com trechos de seus discursos em campanhas e debates. Chama a atenção que esses discursos tentam cada vez mais unir diferentes pautas — economia, imigração, costumes, por exemplo — e ataques a seu concorrente em curtos espaços de tempo. Em seguida, são fragmentados em cortes e publicados via reels.

O exemplo de Trump é um dentre vários que sinalizam como a pós-verdade atua em parceria com a desinformação e juntas atribuem riscos categóricos ao exercício político, sobretudo de uma saúde democrática. Segundo o dicionário Oxford, “pós-verdade” indica “circunstâncias em que os indivíduos respondem mais aos sentimentos e crenças pessoais do que aos fatos”. Portanto, o desejo e as emoções se sobressaem em relação a abordagens críticas que podem ferir tais crenças e preceitos.

Vale ressaltar que mentiras e charlatões que se tornam populares a partir da manipulação de massas e da opinião pública existem na política há muito tempo — antes da internet, da televisão e do rádio, para se ter uma ideia. Diferentemente do que havia nos outros meios de comunicação, nas mídias digitais, como citado anteriormente, a audiência distribui o conteúdo e “gera engajamento”, sendo responsável por colocar determinada figura ou discurso em evidência. Ora, partindo do ponto que há uma conjuntura de vulnerabilidade econômica e desconfiança em relação às instituições políticas e pessoas que deveriam representar o povo, Trump e outros de sua estirpe, que dizem ter soluções simples e fáceis para os problemas enfrentados e, junto a isso, trabalham a comunicação midiática a fim de atuarem de acordo com a lógica e linguagem dos novos meios, tendem a ganhar prospecção.

Junto a isso, não podemos deixar de lado que o algoritmo se baseia no tipo de conteúdo que mais lhe agrada — ou seja, aqueles que ele gasta mais tempo consumindo ou reage (curte ou compartilha) — e em dados pessoais cedidos ao longo da navegação, como estado civil, faixa etária, ocupação, gostos e classe social. Ou seja, o caráter de romper barreiras e expandir o círculo de relacionamentos pode ser visto como verdadeiro até certo ponto; por outro, apenas aglutina indivíduos de valores e pensamentos comuns em torno de bolhas nas quais o “outro” não penetra.

Por fim, vem a questão: qual o lugar das desinformações e da pós-verdade no atual cenário de desconsolidação da democracia?

Joseph Schumpeter, importante teórico da democracia, entende este regime enquanto um arranjo que coloca as pessoas no centro da escolha de quem irá representá-las. Para se exercer tal centralidade de maneira efetiva, é necessário que informações íntegras circulem na arena pública. Nesse sentido, Hannah Arendt entende que o jornalismo possui um papel fundamental para que esse exercício seja realizado, pois orienta-se pela verdade factual — ou seja, fatos objetivos e verificáveis que ocorrem de maneira incontestável, atuando de maneira independente em relação às opiniões. Arendt ainda argumenta que a política se apropria dos fatos a partir de outros meios, elaborados em outros domínios, não sendo ela capaz de difundir e apontar a verdade.

Na desconsolidação da democracia, esse exercício de apropriação dos fatos não se dá na esfera do jornalismo, mas dos veiculadores de desinformação — seja a “imprensa” paralela, o próprio líder político, influenciadores ou mesmo usuários que compartilham esse tipo de conteúdo. Os efeitos disso são variados: polarização política radical, interesses específicos sendo veiculados como fatos, fomento a narrativas baseadas em uma lógica “nós” contra “eles”, criação de crises e estado de desordem social e fundamentação de argumentos e perspectivas tendo como base mentiras.

Em suma, a banalização dos conceitos de “verdade”, “informação” e “fato” se aproxima de uma visão crítica acerca da inserção das redes sociais como esferas de mediação do conflito social e político. Talvez seja um tanto petulante pensar que o jornalismo é, por si só, o veículo da verdade — que é diferente da verdade factual. Em essência, seu exercício se baseia em fomentar e construir uma mediação crítica entre os indivíduos e a sociedade, baseando-se em um grau de periodicidade. Em contrapartida, nas redes sociais a mediação perde relevância, sobrepondo-se convicções subjetivas, crenças e valores, cada vez menos proporcionando acesso à pluralidade de ideias, trazendo como consequências a ojeriza ao “outro” e a dificuldade de se construir consensos, valor essencial das democracias modernas.

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João Pedro Piza é graduando em Jornalismo na Unesp, pesquisador na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e membro do Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia, Educação e Criatividade (Lecotec). Atua nas áreas da desinformação, democracia e mídias digitais.