Um mês após a vitória eleitoral de Luiz Inácio da Silva (PT) para o atual presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda há manifestações ao redor do país contra os resultados das urnas. O movimento é composto por golpistas de verde e amarelo que se aglomeram na frente de quartéis e QGs do Exército e bloqueiam rodovias.
Nas redes sociais circulam vídeos da manifestação com cenas no mínimo curiosas mostrando como a desinformação que essas pessoas consomem em suas redes sociais bolsonaristas os isolam da realidade. Um dos vídeos mostra os manifestantes comemorando a prisão de Alexandre de Moraes, ministro do STF, que não ocorreu.
O descolamento da realidade é tão grande que grupos bolsonaristas radicalizados acreditaram na ‘‘notícia’’ falsa de que a intervenção militar já tinha sido decretada. Vídeos como esse têm circulado nas redes, com correntes de oração, pessoas marchando, falando palavras de ordem e até pedindo ‘socorro’ a ETs com luzes de celular. Aparentemente, são pessoas que vivem numa realidade paralela que é guiada por suas redes sociais bolsonaristas.
A antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina e autora do livro O mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital, Letícia Cesarino, comenta que todo público extremista (como esse que tem certeza de que as eleições foram fraudadas) é conspiracionista, já que é a Teoria da Conspiração que proporciona esse desgarrar da sociedade principal. Essas pessoas já estavam deslocadas e foram facilmente capturadas pelas teorias da conspiração, como uma verdade que estava escondida, colocando-os num lugar mais central do que o que tinham na sociedade.
A professora explica que o processo de criação dessa realidade paralela precisa de mediadores midiáticos e sociológicos. No caso dos bolsonaristas radicalizados, os mediadores midiáticos que guiam a sociedade, como a imprensa, academia e instituições são desacreditados e substituídos pelos conteúdos compartilhados nos grupos no Whatsapp e Telegram, e o mediador sociológico são os outros bolsonaristas.
‘‘Esse fenômeno é muito característico de seita, quando a pessoa corta laços com a família e refaz com os membros da seita. Os ‘Patriotas’, como se autodenominam, acabam confiando entre si e em suas mídias. Você cria essa sensação de experiência de simultaneidade entre pessoas desconhecidas’’, diz Cesarino.
A pesquisadora adiciona que em seitas tradicionais é necessário sair fisicamente da sociedade, mas no caso dos patriotas é um recorte cognitivo.
Dissonância Cognitiva
Em 1957, o psicólogo social Leon Festinger introduziu o conceito de dissonância cognitiva, que se refere ao mal estar que a pessoa sente quando se depara com evidências que contradizem crenças pré-estabelecidas, quando tem duas ideias psicologicamente inconsistentes.
Festinger observou o fenômeno quando ele e seus colegas se infiltraram na seita chamada The Seekers, que acreditava que o mundo seria destruído por um dilúvio que ocorreria antes do amanhecer do dia 21 de dezembro de 1954. O objetivo dos pesquisadores era estudar as cognições e reações quando a profecia de fim do mundo falhasse. A líder dessa seita dizia receber mensagens de extraterrestres do planeta Clarion e que esses iriam salvá-los antes da inundação da Terra. Quando nem o dilúvio e nem o resgate aconteceram, os membros não abandonaram suas crenças e acabaram buscando explicações para a sua não realização. A saída da líder foi alegar que tinha recebido uma mensagem psicografada que dizia que os membros do grupo tinham emanado tanta luz que Deus resolveu salvar a Terra. Os membros aceitaram e continuaram propagando a ideologia da seita.
O mesmo tipo de comportamento tem aparecido nas manifestações: em vários momentos desde o dia 30 de outubro os manifestantes bolsonaristas acreditaram que se ficassem 72 horas nas manifestações ocorreria a intervenção militar e o resultado das eleições seriam invalidados, por exemplo. Em todas as vezes que esse prazo expirou, os bolsonaristas seguiram na crença, interpretaram de alguma maneira e continuaram com o mesmo padrão.
Ricardo Lins Horta, professor de Ciências Comportamentais (ENAP) explica que o fenômeno de seitas é bem conhecido, mas que agora o que os pesquisadores estão tentando entender é o que está presente na arquitetura das redes sociais que potencializa a capacidade de mobilização e de arregimentação desses movimentos de crenças extremistas como o dos patriotas’.
Arquitetura das Redes
Na pesquisa “Democracia Digital – Análise dos ecossistemas de desinformação no Telegram durante o processo eleitoral brasileiro de 2022”, realizada sob a coordenação de Cesarino e dos pesquisadores Leonardo Nascimento (ICTI/PPGCS/LABHD/UFBA) e Paulo Fonseca (ICTI/LABHD/UFBA) foram analisados grupos e canais de cunho político no Telegram. O que se observou foi que o YouTube era a principal fonte dos links compartilhados nesses grupos e que dentre esses links, os canais Jovem Pan e Brasil Paralelo tiveram destaque. A professora comenta que canais como esses e influenciadores digitais muitas vezes não falam explicitamente sobre a teorias da conspiração nos vídeos, mas instalam a dúvida, por exemplo, quando questionam sobre a fraude nas urnas. Outro recurso é camuflar a linguagem, como por exemplo quando falam das ‘‘quatro linhas’’ da Constituição querendo se referir ao artigo 142 que supostamente legitimaria a intervenção militar.
Os grupos no Telegram ampliam a sensação de identificação social e de pertencimento, uma vez que a pessoa se vê num grande grupo que compartilha das mesmas crenças.
Ricardo Horta salienta que ações como as do ‘patriotas’ podem parecer engraçadas, mas que é preciso lembrar que esses bolsonaristas são imbuídos da crença real de que o país está ameaçado. Eles acreditam que o governo do Lula pode violar a inocência das crianças, que quer implantar pautas de ideologia de gênero e banheiros unissex nas escolas, por exemplo.
‘‘As pessoas só são motivadas a ir para rua, pegar ônibus para outra cidade e ficar na chuva porque elas acreditam que valores muito caros e importantes a elas estão sendo ameaçados por pessoas muito mal-intencionadas’’, diz o professor.
A Casa Galileia, organização que atua com pesquisas e análise de dados de grupos evangélicos, cristão e católico monitorou os tipos de conteúdos presentes que circulam nas redes sociais evangélicas e constatou que nos dias 17, 18 e 19 de Setembro e as pautas mais presentes eram guerra espiritual e ideologia de gênero.
As redes sociais permitiram o compartilhamento ao vivo de pânicos morais, teorias da conspiração e lendas urbanas fazendo com que a pessoa esteja diariamente se sentindo ameaçada e com medo. O professor salienta que conteúdos de pânico moral não são novos, mas os smartphones e as redes sociais potencializam o compartilhamento desse tipo de conteúdo.
‘‘Boa parte das vítimas desses conteúdos são os próprios seguidores. Essas pessoas acham que quando Lula assumir a presidência o Brasil vai acabar, elas realmente pensam que vai ter gente entrando na sua casa para roubar sua comida e acreditam que as pessoas vão comer carne de cachorro. Elas estão no regime de terror’’, comenta Lins Horta.
O grande desafio é desradicalizar essas pessoas; a antropóloga acredita que a única saída é afastar a pessoa da sede da “seita”; nesse caso, seria desintoxicá-la desses meios digitais.
‘‘Para você ter alguma chance de trazer essas pessoas de volta, você tem que tirá-las do ambiente da seita. Você teria que mexer na própria estrutura de distribuição do algoritmo de conteúdo. Uma coisa que eu acho que pode ser feita também é fazer com que essas pessoas vejam o tamanho que têm, que elas consigam se ver como minoria sectária’’, diz Cesarino. A antropóloga brinca que seria necessário fazer um controle parental reverso, onde se monitora os conteúdos utilizados pelos adultos, porém a professora não é otimista, não acredita que esses grupos vão sumir, mas que precisam ser colocados na margem, serem empurrados para o ‘‘subterrâneo’’ da internet.
A professora fala que nesse primeiro momento de transição de governo é necessária a moderação e banimentos dos grupos extremistas para acontecer esse deslocamento para a margem da sociedade, mas que a médio prazo não é a melhor solução porque eles têm novas formas de se reorganizar.
O professor Ricardo comenta que podemos obter ‘‘pistas’’ sobre as intervenções eficazes para a desradicalização da publicação recente do maior experimento social já realizado que testou 25 técnicas para reduzir atitudes anti-democráticas, aversão política e suporte a violência política num estudo realizado em 31 mil norte-americanos. O estudo mostrou que uma das intervenções mais eficientes para minimizar a polarização, esse discurso de ‘‘nós’’ contra ‘‘eles’’, é mostrar para a pessoa que existem valores em comum mesmo quando as pessoas discordam. Mas Lins Horta acrescenta que primeiro temos que trazer aos poucos os radicalizados, não começando pelos mais extremos.
‘‘Não temos que abrir mão de bandeiras, mas sim reconhecer que esses diálogos dão um terreno para que você achar o valor comum, essa é uma das formas de você desarmar e desradicalizar essas pessoas’’.
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Nicole De March é mestre e doutora em Física (UFRGS). Pós-doutoranda do LABTTS (DPCT-IG/Unicamp) e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais (EDReS).