Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A razão nos salvará?

(Foto: A Terra É Plana/Netflix)

Sente-se uma mistura de simpatia e indignação ao assistir ao documentário A Terra é Plana, (EUA, 2018), que apresenta o curioso movimento que defende a hipótese do terraplanismo. No caso da simpatia, o diretor Daniel J. Clark nos aproxima a tal ponto de Mark Sargent, um dos líderes americanos do movimento, que passamos a ter uma visão positiva desse protagonista. Sua crença é sincera, seus esforços para questionar e levantar hipóteses é digno de consideração e nota-se o quanto aquilo é importante para ele e seus companheiros. Por outro lado, a indignação aparece quando lembramos que o movimento se baseia num erro científico fundamental, já provado pela melhor referência científica disponível através das mais variadas evidências. As objeções apontadas pelos defensores do movimento são limitadas e muitas vezes infantis, mas soam autênticas. Nenhuma informação ou dado oferecidos parece convencer os adeptos da hipótese terraplanista, que se mantém sempre em busca de evidências que provêm definitivamente aquilo que defendem. Chama a atenção a figura de um engenheiro aposentado, que se dedica integralmente à causa do terraplanismo, criando experimentos e estratégias para promover a causa e comprovar que a “Terra é plana”, em contraposição “à manipulação e às mentiras contadas pela Nasa e pela CIA nas últimas décadas”.

Na esteira do movimento, surgem cada vez mais páginas nas redes sociais para que os adeptos possam manter contato e ampliar as discussões. Já existem inclusive bifurcações no movimento, com diferentes “escolas terraplanistas”, que apontam diferentes explicações para a sua hipótese. Nesse contexto, eventos, livros, objetos variados, entre outras possibilidades comerciais, já movimentam uma intensa economia “terraplanista”. Mais do que isso, o movimento promove uma aproximação entre essas pessoas, todas devidamente desconfiadas que “alguém esconda algo”; esse sentimento de unidade promove uma identidade e um pertencimento que faz bem aos envolvidos, sempre muito à vontade para discutir se existe ou não um domo sobre a planície da Terra. Já não parece haver dúvida racional sobre a hipótese, restando apenas o esclarecimento de alguns detalhes específicos. “Eles”, os céticos, ainda reconhecerão a verdade, através da verdadeira ciência e não das falsas evidências apresentadas pelos “inimigos” e “poderosos”. É uma questão de tempo apenas. Mas as perguntas permanecem: Como pode-se negar um fato tão óbvio? Como dedicar a vida a defender uma hipótese absurda? Como ter alguma expectativa numa hipótese sem nenhuma fundamentação como o terraplanismo?

O filósofo Adrian Bardon analisa essa recusa em reconhecer as evidências, dados e informações sobre a realidade em The Truth About Denial (2019), onde defende que os negacionismos científicos contemporâneos não envolvem necessariamente pouca instrução ou algo como a ignorância. Como se observa no documentário, pessoas com formação superior e bem informadas sobre diversos aspectos da realidade negam a esfericidade da Terra, assim como aqueles que negam o aquecimento global, acontecimentos históricos bem documentados como o Holocausto e a escravização atlântica, a evolução das formas de vida por seleção natural, a eficácia das vacinas, entre outros fatos, mas acreditam em imaginativas teorias. Segundo a hipótese de Bardon, a negação se baseia numa “resolução emocionalmente satisfatória da dissonância entre como gostaríamos que o mundo fosse e a forma como ele de fato se apresenta.” Nesse sentido, “a negação envolve a rejeição (ou adoção) motivada emocionalmente de uma afirmação factual, mesmo diante de fortes evidências contrárias”. O objetivo dessa rejeição é a segurança e a manutenção das crenças que constroem identidades e pertencimentos, aos quais se adere e que envolvem intensos laços afetivos e sociais entre os membros dos grupos.

Num mundo conectado por redes de interação social digital, é relativamente fácil disseminar crenças, por mais questionáveis que sejam, e encontrar uma comunidade que as compartilhe e as reforce, contribuindo para a construção de uma identidade comum. Conforme vemos em A Terra é Plana, os encontros e reuniões dos adeptos são animados e cordiais, quase familiares ou religiosos. Quando os consensos científicos ameaçam essa rede de crenças e identidades, as pessoas tendem a defender suas visões de mundo, muitas vezes através do “raciocínio motivado”, o processo de buscar informações que concordam com suas crenças. No caso do terraplanismo, as evidências mais simples da esfericidade da Terra são desprezadas, em nome de outras evidências sem confirmação, mas que atacam o que os “inimigos” defendem. Barton defende que esse mecanismo de defesa do sistema de crenças é um traço da psicologia humana, onde “o senso de identidade de um humano está intimamente ligado ao status e crenças de seu grupo identitário”. A negação é um fruto desse tipo de reação, um pensamento enviesado que reage às informações factuais indesejadas que colocam em risco a rede de crenças e o pertencimento. Para Barton, o risco maior aqui é que “esses fatos sobre a natureza humana podem ser manipulados para fins políticos”, como no caso do negacionismo estimulado por líderes políticos em relação a informações científicas.

Uma investigação que pode contribuir para a análise do fenômeno do negacionismo é a compreensão da própria racionalidade, seu funcionamento e seus limites. Sobre esse aspecto, os cientistas cognitivos Hugo Mercier e Dan Sperber sustentam em The Enigma of Reason (2017) que a racionalidade humana não evoluiu apenas com o intuito de possibilitar o conhecimento, através da descoberta de verdades sobre a realidade, mas também para nos fazer triunfar em disputas sobre as interpretações da própria realidade. Seu desenvolvimento está conectado com a justificação de nossas crenças e ações, para o convencimento dos outros através da argumentação e para a avaliação das justificativas e dos argumentos mutuamente oferecidos. Uma evidência dessa hipótese seria o “viés da confirmação”, a tendência para selecionar argumentos que comprovam nossa visão, enquanto ignoramos aqueles que os colocam em dúvida, como no caso dos negacionismos. Outra evidência seria o fato de sermos mais exigentes em relação aos posicionamentos e raciocínios alheios do que em relação aos nossos, situação que muitas vezes leva ao autoengano. Em paralelo, a racionalidade nos ajuda a refinar nossa intepretação da realidade e assim obter mais informações e conhecimentos. Nesse sentido, os avanços promovidos pela capacidade racional estão conectados à prática da discussão e da avaliação conjunta e constante do mundo à nossa volta, como no caso da prática científica, estruturada a partir de debates, análises e revisões.

Conforme a análise de Sperber e Mercier, muitas vezes nossos esforços não estão direcionados simplesmente para buscar informações na realidade e construir nossas crenças a partir de tais dados, mas sim para encontrar elementos que justifiquem e sustentem nossas crenças. Aqui, a abertura à discussão e ao debate, juntamente com a aceitação de evidências contribuem para o refinamento da visão de mundo, que nos ajuda a limitar os efeitos de nossas tendências de confirmação. Porém, caso tais possibilidades não se efetivem, nos mantemos fechamos em nossos conjuntos de crenças, constantemente reforçadas pelo entorno social no qual vivemos. Essa é a atitude central da prática científica, produzida num contexto social no qual se estimula constantemente a apreciação e revisão sistemática dos enganos e erros que habitualmente incorremos em nossos raciocínios. No entanto, num mundo com amplas possibilidades de interação social digital, realizadas em plataformas que se pautam por interesses comuns dos usuários, em contextos de grande desordem informacional e de diminuição constante da confiança em instituições e especialistas, os negacionismos contemporâneos se multiplicam e encontram pessoas cada vez disponíveis para aceita-los e defendê-los. Assistimos no documentário pessoas formulando complexos argumentos para defender o terraplanismo, mas raramente com algum indício de questionamento ou dúvidas sobre a própria certeza.

Esse grau da certeza também chama a atenção nos negacionistas apresentados no documentário, que mantém suas crenças mesmo quando desafiados por evidências contrárias e na permanente ausência de provas de suas hipóteses. Essa intensidade remete ao trabalho do neurocientista Robert Burton, que desenvolveu uma análise reveladora sobre a natureza da convicção humana em On Being Certain (2008). Burton defende que a convicção humana envolve intensos elementos afetivos e cognitivos, muitas vezes para além da factualidade que possa vir a sustentá-la. De maneira geral, apesar do modo intenso como sentimos a certeza, na grande maioria das vezes “ela não é nem uma escolha consciente, nem mesmo um processo de pensamento.” Segundo Burton, a certeza e os estados similares de “saber o que sabemos” nascem de mecanismos cerebrais involuntários que, como o amor ou raiva, funcionam independentemente da razão. Historicamente, algumas convicções compartilhadas por grupos humanos que hoje nos parecem estranhas se mantiveram durante muito tempo, com consequências relevantes. A sugestão de Burton envolve um cuidado maior com nossas convicções, reconhecendo que na maior parte das vezes elas são produtos de nossas reações e afetos mais intensos, situação que torna a reflexão e a revisão constante de nossas crenças necessárias para quem buscam uma compreensão mais detida sobre realidade.

Nossas fragilidades cognitivas também podem ser exploradas por projetos econômicos e políticos, para os quais a negação de dados e informações científicas podem ser relevantes. O historiador Robert Proctor identifica diversos momentos da história recente nos quais essa situação ocorreu, naquilo que chama de “criação da ignorância”. Em tais processos, determinadas formas de negacionismos foram estimuladas por empresas e governos com o objetivo de angariar apoio político para posicionamentos específicos ou estimular o consumo de produtos tóxicos. O negacionismo do aquecimento global e a negação dos problemas causados pelo cigarro são dois exemplos oferecidos por Proctor, no qual o questionamento e a dúvida sobre as investigações científicas são utilizados para confundir o debate e influenciar atitudes de desconfiança. Dessa forma, a “criação da ignorância” é uma estratégia vantajosa para grupos que dependem da manutenção de determinadas visões de mundo, e a análise científica passa a ser um empecilho a ser atacado. No caso do terraplanismo, um dos entrevistados do documentário faz referência à possibilidade de que escolas passem a discutir a hipótese do movimento, o que levanta preocupações sobre a realidade, os apoios envolvidos e o alcance dessa proposta.

Além da simpatia pelos protagonistas e da indignação por suas crenças, o documentário A Terra é Plana nos estimula a refletir sobre a necessidade de cuidado com as nossas próprias crenças. Num mundo onde a incerteza é cada vez maior, onde as informações estão pretensamente disponíveis para todos e nos quais muitos de nós são carentes de estabilidades, todos podemos ser traídos por nossas fragilidades cognitivas e nos aproximar de visões de mundo questionáveis e inverossímeis. O risco maior é que, caso isso ofereça pertencimento, um reforço seguro para nossas crenças anteriores e contribua para a afirmação de nossa identidade, poderemos negar o efeito das ações humanas para as mudanças climáticas, deixar de vacinar nossos filhos, tomar cloroquina para combater a Covid-19, questionar as evidências da evolução por seleção natural e defender que a Terra é plana, entre outras possibilidades. E a razão provavelmente não nos salvará. Por outro lado, a estruturação de uma cultura reflexiva e analítica, que preza pela abertura, pelo diálogo e pelo estímulo à processos de formação de estimulem o cuidado com nossas fragilidades cognitivas também não nos salvará, mas permitirá que ao menos possamos nos questionar se estamos certos. E assim continuarmos a acreditar que temos bons motivos para defender que a Terra é redonda.

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Referências

A Terra é Plana. Direção de Daniel J. Clark. 96 minutos. Estados Unidos, 2018.

BARDON, Adrian. The Truth about Denial: Bias and Self-deception in Science, Politics, and Religion. Cambridge: Oxford University Press, 2019.

BURTON, Robert. On Being Certain: Believing You Are Right Even When You’re Not. Nova York: St. Martin Press, 2008.

MERCIER, Hugo; SPERBER, Dan. The Enigma of Reason: A New Theory of Human Understanding. Cambridge: Harvard University Press, 2017.

PROCTOR, Robert; SCHIEBINGER, Londa. (Ed.). Agnotology: The Making and Unmaking of Ignorance. Palo Alto: Stanford University Press, 2008.

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José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais no IFMG Campus Ponte Nova.