Muito já se falou sobre o papel do jornalismo científico e dos jornalistas para a difusão de informação precisa e de qualidade, principalmente desde o ano passado, quando o enfrentamento à pandemia reforçou a discussão sobre a importância da divulgação científica. Dependendo da gravidade da situação, informações equivocadas ou mentirosas podem até matar, e, lamentavelmente, alguns profissionais do jornalismo parecem não se dar conta da responsabilidade que possuem e, em vez de combaterem as notícias falsas, são eles próprios quem as disseminam.
Mas será que agem assim somente por desconhecimento? O vídeo publicado pelo jornalista Alexandre Garcia em dezembro do ano passado já vale como um bom case do que não se deve fazer em se tratando de divulgação científica [1]. Um case de irresponsabilidade, um mau exemplo, não só pelo conteúdo do vídeo, mas pelo contexto. No vídeo, o jornalista critica as medidas preventivas que estavam previstas para o município de Manaus e louva a parcela da população local que se opôs às medidas como uma espécie de “despertar para a racionalidade”. Um mês depois, em janeiro de 2021, Manaus torna-se a primeira capital de um estado brasileiro a sofrer mais fortemente com a chamada “segunda onda” da Covid-19, com gente morrendo por falta de respiradores. Um drama repercutido no mundo inteiro [2].
O vídeo do jornalista traz um desonroso compilado de absurdos que foram disseminados ao longo da pandemia. É representativo que tenha sido produzido e publicado em dezembro, porque soou como uma retrospectiva de passagens lastimáveis de 2020. Só faltou o ex-cronista da Rede Globo e ex-porta-voz do presidente João Figueiredo (último general a presidir o Brasil na ditadura) defender o uso da cloroquina.
O uso tendencioso das palavras
Logo no início do vídeo intitulado “Como Búzios, Manaus não aceita lockdown”, Garcia se refere às duas cidades como exemplos de um “despertar da população brasileira”, já que em ambas houve uma parte da sociedade que foi às ruas protestar contra as medidas restritivas, que aliás não chegavam a ser um lockdown igual aos vistos em países europeus como a Itália. A escolha de certas palavras e a opção pelo exagero são características da tendenciosidade do jornalista em seu vídeo. Ele exalta a insurgência de comerciantes locais como uma forma de “racionalidade” e exercício da “liberdade” contra as medidas protetivas dos órgãos de estado. Medidas estas que são recomendadas por organismos e especialistas da área de saúde. Garcia, que usa como pretexto uma suposta defesa do trabalho e da renda para justificar suas críticas ao isolamento social, chega a pôr em dúvida a proibição que o município do Rio de Janeiro impôs às festas de fim de ano, demonstrando uma confusão tremenda entre deslocamentos e aglomerações para fins de trabalho e para festas e recreações. Um absurdo completo!
“Isso é liberdade”, disse Garcia, referindo-se às aglomerações de fim de ano. Não, caro jornalista! Isso é irresponsabilidade! E é impressionante como o conceito de liberdade vem sendo cooptado e deturpado por grupos políticos que desconsideram o valor da coletividade e o conceito de estado. A noção distorcida de liberdade disseminada por esses grupos e da qual se vale o jornalista vai de encontro a princípios básicos de nosso ordenamento jurídico que dizem que as escolhas individuais não podem se sobrepor ao bem comum e que não há direitos absolutos, nem mesmo a liberdade. Aliás, nem mesmo a vida: do mesmo modo que um indivíduo portando uma arma em uma situação na qual apresente perigo para terceiros pode ser executado por um agente do estado (um policial) na busca por evitar um número maior de mortos, o direito de ir e vir e a livre iniciativa (como o funcionamento normal de estabelecimentos comerciais) também podem sofrer restrições se houver o entendimento de que isso é necessário para a preservação de vidas. Claro que isso implica em perdas, incluindo as perdas financeiras, para alguns dos envolvidos, e medidas de proteção social devem ser adotadas pelos governos. Mas o cronista não entra nesse aspecto. A solução, para ele, parece ser a desobediência civil sem pensar nas consequências que viriam. E elas vieram!
Ele ainda classifica as medidas protetivas de outros países como “experiência totalitária” e a adesão a essas medidas, por parte da população que ficou em casa respeitando as normas de distanciamento, como “falta de coragem” dos “cordeirinhos que obedecem a tudo”. Simplesmente ultrajante! “Desaparece a racionalidade”, ele completa. Aqui, a palavra racionalidade é utilizada para rotular um explícito negacionismo científico, contrariando o consenso entre epidemiologistas sobre a necessidade do isolamento social.
“Doenças respiratórias matam mais que a covid”
Sem apresentar fontes, Alexandre Garcia afirmou que as doenças respiratórias são mais letais que a Covid-19 e que, no Brasil, em 2019, foram responsáveis por 251 mil mortes. Aqui ele faz coro com tantos outros negacionistas que usam números de diversas causas de mortes para minimizar os riscos do coronavírus. Essa falácia pode variar: desde citarem mortos por engasgamento — como fez Caio Coppola [3] — até mortos pela desigualdade social (já ouvi isso na fila de um caixa de supermercado). O problema é que as pessoas vão continuar morrendo pelas diversas outras causas, às quais as mortes pela Covid-19 irão se somar. Aliás, ao contrário do que Garcia afirma, a Covid superou a média anual de mortes por doenças respiratórias no Brasil [4]. Portanto a afirmação não procede.
Vacina da Pfizer: logística e alteração no DNA
Garcia desqualifica a vacina da farmacêutica alemã destacando suas demandas logísticas que supostamente as inviabilizaria no Brasil, como a exigência de freezers de alta capacidade para que as doses sejam mantidas em temperatura menor que 70 graus celsius negativos.
Entretanto, é um grande exagero afirmar que por conta disso a vacina da Pfizer seria inviável no país. A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, já foi por diversas vezes enfática ao afirmar que sim, é possível o país acondicionar, transportar e manipular as doses, mesmo com essa exigência de baixíssima temperatura. Dalcomo tem sido uma uma importante voz para o esclarecimento da população sobre o contexto pandêmico e no combate a falácias e fake news, e a Fiocruz é referência mundial em vacinação e pesquisas na área. A pesquisadora ressaltou que não é “aceitável que nós deixemos de aproveitar uma vacina que já está aprovada em caráter emergencial por questões logísticas” e que ela própria já foi procurada por diversos empresários do setor privado que se dispuseram a doar freezers com capacidade refrigeradora para armazenar o imunizante [5]. Portanto, há entraves logísticos, mas eles não são incontornáveis. A propósito, o ministro Pazuello não é um especialista em logística? Pois então…
Em seguida, Alexandre Garcia comete o maior dos absurdos, ao afirmar que a vacina da Pfizer “mexe com o DNA”. Voltando a nossa pergunta inicial (será que é só desinformação?), fica difícil afirmar que todas as afirmações enganosas do jornalista sejam somente por desconhecimento sobre o assunto. Nenhuma vacina para a Covid-19 altera o DNA. O DNA fica no núcleo das células e as vacinas não chegam nem perto do núcleo celular, como explica o microbiologista Luiz Gustavo de Almeida, em seu importantíssimo texto para a revista Questão de Ciência [6]. Em outro importante esclarecimento, o neurocientista Fabiano de Abreu, doutor em ciências da saúde, refuta a afirmação mentirosa destacando que a vacina contra a covid-19 é de mRNA (uma espécie de cópia do DNA) e que “o RNA mensageiro não altera o código genético pois ele é uma cópia da fita e não o autêntico” [7]. Pois é. O código genético autêntico fica bem protegido no núcleo celular. Alexandre Garcia sequer se dá ao trabalho de explicar, do ponto de vista genético, como a vacina poderia “mexer com a genética”. Em vez disso ele parte para uma evasiva ao dizer quem em se tratando de “manipulação genética” só confia na Embrapa. Só que a Embrapa é outra história, faz manipulação genética, por exemplo, com o gado. Essa tem a confiança de Garcia.
Ivermectina
Se faltou a defesa da cloroquina, não faltou a da ivermectina. O ex-cronista global defendeu a disseminação da ivermectina como tratamento preventivo, fazendo coro com o governo federal e seu Ministério da Saúde, quase como um porta-voz dos mesmos. Daí então ele dispara dados, novamente sem fontes, sobre lugares em que a ivermectina teria sido distribuída e ajudado a reduzir casos letais da covid-19. Nenhum estudo científico é apresentado. Não há comprovação de eficácia da ivermectina e nem de nenhum suposto “tratamento preventivo” (incluindo a cloroquina e hidroxicloroquina). Como destaca a bióloga Natália Pasternak, o remédio antiparasitário, usado para controle de piolho, pulgas, carrapatos e algumas verminoses em animais e seres humanos, demonstrou funcionar contra a atividade viral in vitro, ou seja, em cultura de células, e mesmo assim em doses elevadíssimas, o que poderia provocar uma overdose em um ser humano [8].
Cabe ressaltar que o uso “preventivo” da medicação, mesmo sem comprovação clínica, vem sendo adotado por pessoas e até por alguns municípios, sem no entanto demonstrar eficácia. Itajaí tem a maior letalidade por Covid-19 dentre as grandes cidades de Santa Catarina, mesmo tendo sido notícia por conta da prefeitura local distribuir o vermífugo gratuitamente como medida “profilática” [9]. Desde julho, mais de 2,2 milhões de comprimidos foram entregues à população. Até mesmo em Manaus, um médico que coordena UTI desabafou sobre a ineficácia do “tratamento precoce”, relatando que a maioria dos pacientes que chegam em sua unidade fizeram uso das medicações indicadas pelo governo federal e pelo jornalista Alexandre Garcia [10].
E tem mais…
Uma refutação mais minuciosa do vergonhoso vídeo renderia mais e mais parágrafos. Cabe-nos destacar brevemente outras falas absurdas do ex-porta-voz de general, que disse que fechar ou não fechar as atividades comerciais “não faz diferença nenhuma”, coisa que, com já abordamos, contraria as recomendações de especialistas e também os números. Basta comparar a proporção de mortos em função do coronavírus no Brasil com os números da Nova Zelândia ou Alemanha, onde houve severas restrições. O próprio Bolsonaro, em maio do ano passado, fez a mesma tentativa de Garcia e se deu mal. Tentou comparar Argentina com Suécia para “confirmar” que as medidas de isolamento não fariam diferença (o primeiro país havia adotado as medidas; o segundo, não). Veículos do jornalismo profissional fizeram as contas: a Argentina tinha 7,4 mortes por milhão de habitantes, enquanto o país escandinavo tinha 346,5 mortes por milhão [11]. A matemática é implacável, com Bolsonaro e com Alexandre Garcia. Para contestar as pessoas que estão dentro de casa por precaução, o jornalista ainda solta outra pérola: “nada como ar puro”. Um acinte!!
Por fim, a política
No mesmo vídeo, ao final, o jornalista divulga o resultado de uma pesquisa de intenção de votos para a presidência em 2022, do site Poder 360. Garcia diz não confiar em pesquisas de institutos tradicionais, mas nessa ele confia: “São meus vizinhos de escritório”, disse ele, referindo-se à equipe do site. Segundo os dados, se a eleição fosse hoje, Bolsonaro venceria logo no primeiro turno, com quase o triplo de votos do segundo colocado, que seria Fernando Haddad. Divulgação de pesquisas é prática comum entre jornalistas, mas é interessante como Garcia “assina embaixo” desta pesquisa específica (logo, deste resultado), ao mesmo tempo em que desqualifica outras possibilidades.
Pode parecer que neste momento ele muda de assunto, mas em um esforço de análise do discurso, não muda. Desde o começo do vídeo a narrativa sobre a covid-19, incluindo críticas às medidas restritivas, curas não comprovadas, mentiras sobre a vacina etc, é basicamente a narrativa bolsonarista. A divulgação de uma pesquisa favorável ao atual presidente só deixa explícito o que já estava claro. É por isso que ao analisarmos notícias falsas, distorções e teorias conspiratórias, devemos buscar uma contextualização sociopolítica da narrativa. Por exemplo, no caso da vacina e a falsamente alegada mudança genética que ela provoca, não adianta somente explicar, em termos da biologia, da genética e da medicina, como isso não é possível. Observem que o jornalista não se preocupou muito em fazer detalhamentos nessas áreas para convencer o público sobre a falsa afirmação. O esclarecimento nessas áreas é fundamental, mas o mapeamento sociopolítico é aquilo que vai puxar o fio da narrativa, seguir esse fio e chegar à raiz: o comprometimento político. O cerne político pode parecer óbvio para alguns, mas para muitos não é.
Gostaríamos de dizer que o vídeo serve como exemplo da importância da especialização do profissional da comunicação em assuntos de ciência e saúde, mas isso seria um tanto ingênuo. Seria partir do princípio de que Alexandre Garcia é meramente um desinformado. Claro que a especialização é muitíssimo importante e faz diferença. Mas, voltando a nossa pergunta inicial, possivelmente não é uma questão somente de desinformação. O vídeo está mais para um bom exemplo de distorção da ciência e da divulgação científica como fruto de propaganda política. Neste caso, o de Garcia, certamente se aplica o que diz o físico americano Alan Sokal: “Os piores inimigos da ciência são os políticos e a propaganda” [12]. Um vídeo que, analisado em perspectiva com os desdobramentos ocorridos em Manaus no mês seguinte ao que foi produzido, mostra-se um case do quanto o jornalismo dito profissional pode ser irresponsável e prestar um desserviço à saúde pública e à população.
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Alexandre Freitas Campos é jornalista, cineasta e historiador; mestre em Mídia e Cotidiano (UFF), especialista em Sociologia Política (Ucam) e pesquisador em educação e popularização de ciência, tecnologia e história.
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REFERÊNCIAS
[1] Vídeo de Alexandre Garcia
https://www.youtube.com/watch?v=mcKlFPN-RrE&fbclid=IwAR1cAFnhmxjkf-mNx8pbTRNRPLTdSIIu_vIwlsRtGac3_e4rT1XmJ7tIFik
[2] Repercussão mundial do drama vivido em Manaus
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/01/15/imprensa-mundial-repercute-sobre-o-colapso-do-sistema-de-saude-em-manaus
[3] Caio Coppola compara mortos pelo coronavírus com mortos por engasgamento nos EUA
https://tribunahoje.com/noticias/politica/2020/04/29/apos-subestimar-doenca-caio-coppola-testa-positivo-para-coronavirus/
[4] Comparação entre mortos pela covid e por doenças respiratórias
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/07/25/covid-19-ja-supera-mortes-anuais-por-doencas-respiratorias-desde-1996.htm
[5] Sobre a logística para a vacina da Pfizer
https://www.band.uol.com.br/noticias/pesquisadora-da-fiocruz-inaceitavel-nao-aproveitar-vacina-por-questao-logistica-16318806
[6] Sobre vacina e DNA
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2020/11/25/nenhuma-vacina-vai-mexer-com-o-seu-dna
[7] Sobre vacina e DNA
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/vacina-de-mrna-contra-covid-19-nao-altera-codigo-genetico-explica-neurocientista.phtml
[8] Sobre a ineficácia da ivermectina no combate ao coronavírus
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2020/06/15/ivermectina-e-o-novo-bezerro-de-ouro-da-pandemia
[9] Mesmo com distribuição gratuita de ivermectina, Itajaí tem elevado número de casos de covid
https://www.nsctotal.com.br/colunistas/dagmara-spautz/com-distribuicao-de-ivermectina-itajai-tem-a-maior-letalidade-por-covid?fbclid=IwAR0ytTQSPx2vq_2CtV1nS93D4jtp8X3tiawMV0sPEoEbIhyQJz5ORPprBvc
[10] Manaus: coordenador de UTI desabafa sobre ineficácia do tratamento precoce
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/15/manaus-coordenador-de-uti-desabafa-sobre-ineficacia-do-tratamento-precoce.htm?utm_source=facebook&utm_medium=social-media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral&fbclid=IwAR1faITw8V1XnYgyy5oWOg0wU3ZG1Zr0uhbRURX_rQwJ3KO5iwI4rMEsNGg
[11] Comparação entre Argentina e Suécia: mortos por milhão de habitantes
https://www.acidadeon.com/cotidiano/brasil-e-mundo/NOT,0,0,1517429,Bolsonaro%20pediu%20para%20comparar%20as%20mortes%20de%20Brasil%20e%20Argentina-%20O%20resultado%20e%20pessimo%20para%20ele.aspx
[12] Entrevista com o físico americano Alan Sokal
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/05/ciencia/1491416759_691895.html