Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Antes a morte que a vacina

Foto: Governo do Estado de São Paulo

Recebi por WhatsApp um vídeo no YouTube, falado em espanhol, alertando contra as próximas vacinas, enviado por um de meus primos. Ele é um dos milhões infectados pela crença em complôs e conspirações, agora centrados na criação e utilização das próximas vacinas por sociedades secretas e farmacológicas interessadas em dominar o mundo e transformar os homens em seres controlados e teleguiados. Sua decisão já foi tomada: não irá se vacinar!

Tudo começou há alguns anos com as mensagens anônimas ligadas ao Pizzagate, pela quais os principais dirigentes democratas da campanha de Hillary Clinton seriam pedófilos. Logo depois da vitória de Trump, a primeira mensagem, há três anos, com a simples assinatura de Q, tratava de um possível extradição de Hillary Clinton. A seguir, outra “mensagem secreta” de Q, supostamente um alto funcionário do governo norte-americano, “revelava” ser um robô, instalado pela CIA, o presidente da Coréia do Norte. Em pouco tempo, Q e seus anônimos seguidores, QAnon, assumiram a divulgação de teorias conspiratórias, alimentadas por seguidores do presidente Trump.

Agora, com a derrota de Trump e o controle do mundo pelo coronavírus, os conspiradores deixam de lado as conspirações políticas e militares, para disseminar boatos e falsas informações médicas e sanitárias relacionados com os próximos programas de vacinação. No fundo a ideia é a mesma — há um movimento secreto mundial para se dominar a humanidade. E agora isso se torna possível com a vacinação em massa de quase todos os habitantes do planeta — a trama será consumada no ato da vacina, quando será também inoculado um chip eletrônico nas pessoas. A ideia é absurda e grotesca, porém muitos nela acreditam e outros tantos ficam na dúvida se aceitarão ser vacinados.

Para quem não está imunizado contra as fake news e toda forma moderna de propagação de mentiras, o caos aumentou, há alguns dias, com a divulgação por Internet de um longo filme YouTube de quase três horas, Hold Up (Assalto). Difícil agora de se abrir, mas já foi visto por milhões de pessoas.

Seu produtor, o francês Christophe Cossé, considera o coronavírus uma doença igual às outras, porém inflada e contra a qual se construiu uma ideologia sanitária autoritária, para se levar a um tipo de sociedade vigiada e submissa. A humanidade estaria sendo submetida a campos de concentração, dos quais não se pode sair, como os de Hitler. Estaria havendo uma inimaginável manipulação de todo mundo. Dessa manipulação participariam os cientistas franceses, mancomunados com os laboratórios farmacêuticos.

Guardadas as proporções, o quadro dos resistentes às vacinas não difere muito do que circulava na boca do povo, quando o médico inglês Edward Jenner descobriu, em 1796, quase por acaso a primeira vacina, contra a varíola, partindo de observações com a varíola bovina. Muita gente não queria ser vacinada, por ter medo de ficar parecido com boi ou vaca ou passar a ter comportamento de bovino.

A mentira tem sua força de atração? É mais fácil se acreditar numa teoria misteriosa do que aceitar a versão realista da ciência, do confinamento, no caso do coronavírus, cuja transmissibilidade seria capaz de repetir a tragédia da gripe espanhola? O impacto do filme Hold Up poderia ser comparado com o falso documentário Operation Lune, querendo demonstrar que a equipe de Neil Armstrong não chegou à Lua, as imagens mostradas teriam sido filmadas num deserto.

Mentira por mentira, uma grande parcela da população norte-americana ainda acredita na versão de fraude nas eleições propagada pelo atual presidente Donald Trump, apesar das provas contrárias. No Brasil, é ainda grande o número de pessoas considerando correta a política do presidente Bolsonaro contra o coronavírus. A gripezinha e a cloroquina não foram totalmente desmistificadas. Mente que eu gosto!

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.